Dá-se, no nosso português, desde há séculos, um lento processo de fechamento (os linguistas falam em elevação) das vogais que, num vocábulo, precedem a sílaba tónica. Veja-se como pronunciamos «despertador», «adormecer», «metamorfosear», e como os pronuncia um brasileiro. Este processo de obscurecimento e consonantização da nossa fala vai seguramente prosseguir. E uma coisa parece certa: o novo Acordo Ortográfico vem dar-lhe um valente empurrão.
Admito que, com o Acordo, o livro português terá mais chances de continuar em África. E que um comunicado internacional em português não precisará, como hoje, de duas redacções. Mas aí acabam os benefícios do Acordo. Tudo o resto — e sobretudo a eliminação das consoantes mudas — é de duvidoso ganho e de muito provável perda. Ninguém, até hoje, fez as exactas contas. Mas é de crer que este Acordo saia caro ao português como o falamos.
Não me move qualquer fetichismo ortográfico. Acho que uma grafia que reflicta a pronúncia será sempre preferível a uma que só está ali para o chique. Acontece que, na grafia de Portugal, não é para o chique que as consoantes mudas ali estão. Elas são funcionais, e removê-las terá um preço. Essas consoantes têm operado como um travão ao fechamento do nosso vocalismo.
Hoje, pronunciamos com meridiana claridade as aludidas vogais (mas, leitor brasileiro, não a consoante que se segue) em «activo», «actividade», «reactivar». Em «factura», «facturar», «facturação». Em «directiva», «rectificar», «corrector», «receptivo». Em «adoptar», «adopção», «adoptivo». E assim em centenas de outros vocábulos.
Certo: a escrita do «c» e do «p» não garante a abertura da vogal a cem por cento. Já passámos a fechá-la em «actual», «actualidade», «reactualizar». E, enquanto ainda todos a abrimos em «actor», já é frequente ouvi-la fechar em «actriz». Fechámo-la já também — e isso não obstante a articulação da consoante — em «bactéria», em «factual», em «adaptar». A tendência para o fechamento não deixa, pois, quaisquer dúvidas. Os calafrios chegam-nos quando se ouvem locutores de rádio e televisão dizer «adutar» por adoptar e «adução» por adopção. Ou quando se nos fala em «col’tividade» (na RTP) e em «fâtôres» em jogo (na TSF). Desaparecidas as consoantes na escrita, o processo, não tenhamos ilusões, irá acelerar-se. Espera-nos um futuro literalmente sombrio.
Esta bomba-relógio não é, todavia, a única. O Acordo prescreve a escrita da consoante sempre que pronunciada. Assim, os brasileiros manterão «recepção», «concepção» ou «aspecto», e nós passaremos a grafar «receção», «conceção» (com previsíveis confusões com «recessão» e «concessão») e «aspeto». O grande problema é que nós, portugueses, estamos longe de qualquer unanimidade no pronunciar, ou não, do «c» e do «p». Daqui a anos, num mesmo jornal, na mesma página, um jornalista escreverá «cepticismo», «intelectual», «característico» e o colega «ceticismo», «inteletual», «caraterístico».
No mais recente Campeonato da Língua Portuguesa, Bárbara Guimarães, na SIC, ditando em directo um texto, pronunciou primeiro «o espéctro» e, em repetição, o «espétro». Um caso isolado, decerto. Mas este tipo de indecisão, já hoje corrente, simplesmente explodirá quando o Acordo entrar em vigor. Para nossa crescente insegurança. Guarde bem este Actual.
Artigo publicado no caderno Actual do semanário português Expresso, de 5 de Abril de 2008