«É maravilhoso a língua ser a mesma. Poder xingar ou dizer o que eu gosto em português. (...)»
* in "Diário de Notícias" de 5 de maio de 2018
«Eu pergunto se ele vai de terno, ele me diz que não vai de fato. Eu uso calcinhas, que ele diz que são cuecas, ele usa boxers, que eu digo que são cuecas.» Parece caricatura mas não é. «Eu digo para de frescura e ele me diz não me venhas com fitas. Eu digo que ele não sabe porra nenhuma, ele diz que eu não sei a ponta de um corno.» Os problemas de comunicação da brasileira Ruth e do seu marido, o português Filipe, foram o tema da crónica semanal que ela assina no Estadão, no passado dia 22 de abril. O título era: "Eu digo 'Brasiu', ele diz 'Purtugal'". E nela Ruth Manus elencava os vários equívocos provocados pelas diferentes línguas que eles usam, apesar de ambos falarem a mesma língua portuguesa.
«É tudo verdade», garante Ruth Manus, advogada e escritora de 29 anos que vive em Portugal desde 2015. «Às vezes, eu pergunto uma vez, duas vezes, três vezes e continuo sem entender o que ele ou outra pessoa dizem e então simplesmente desisto.» Porque é que isto acontece? «Com o vocabulário eu já estou mais ou menos familiarizada, leio muito, os jornais, os livros. Mas para mim a dificuldade é mesmo a rapidez com que as pessoas falam e a maneira como falam, para dentro. Parece que é outra língua. Às vezes, penso que seria mais fácil falar em inglês, talvez porque eu desde logo presumisse que não fosse entender.»
É essa diversidade e ao mesmo tempo essa união que se celebram hoje [5 de maio de 2018], Dia da Língua Portuguesa e da Cultura da CPLP. Entre os muitos eventos programados nos nove países de língua oficial portuguesa – que fazem desta a quarta língua mais falada no mundo –, destaque para as celebrações em Nova Iorque, sede da ONU. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, o humorista Ricardo Araújo Pereira e o escritor Onésimo Teotónio de Almeida são alguns dos que participam no programa, ao longo de todo o dia, nos Jardins das Nações, onde também serão evocados os 20 anos da atribuição do Prémio Nobel da Literatura ao escritor português José Saramago.
Não é tradução, é adaptação
Como escritora, Ruth Manus tem uma tarefa complicada. «Se eu não trabalhasse com a escrita, não teria o menor problema em aportuguesar o meu português, eu até acho bonito. Mas eu não posso permitir que isso aconteça porque o meu público está preponderantemente lá no Brasil.» Ao mesmo tempo, Ruth começou também a publicar crónicas no Observador, em Portugal, e aí a sua preocupação é ser entendida: "Eu jamais vou tentar escrever em português de Portugal porque seria ridículo. Mas tomo alguns cuidados. No outro dia, eu ia escrever celular, depois lembrei-me que aqui se diz telemóvel, mas isso não seria natural para mim, então escrevi iPhone", conta, rindo.
A jornalista brasileira Giuliana Miranda tem o mesmo problema. Giuliana tem 30 anos e mora em Portugal desde 2014. Quando publica na Folha de São Paulo tem de pensar nos seus leitores brasileiros: «Em alguns lugares do Brasil, rapariga é uma palavra muito feia, quer dizer prostituta, então, se um entrevistado português usasse a palavra muito provavelmente eu traduziria». Por outro lado, quando participa no programa da RTP Mundo Sem Muros ou quando escreve artigos para o DN, confronta-se com outras dificuldades. Não se trata só de ter de usar autoclismo em vez de descarga ou casa de banho em vez de banheiro. No Brasil, diz-se Irã em vez de Irão. E canadense em vez de canadiano. E mesmo que tenha todas as palavras certas e a preocupação de usar sempre o Acordo Ortográfico, Giuliana percebe que os seus textos são muitas vezes corrigidos: «Eu não me importo, acho que a essência do que escrevo em português do Brasil está ali, mas tem de ser adaptado.»
«Claro que é maravilhoso a língua ser a mesma. Poder reclamar em português, poder xingar ou dizer o que eu gosto. Eu já morei nos Estados Unidos e apesar de falar bem inglês não é a mesma coisa do que a gente poder se expressar na nossa língua de origem», diz Giuliana. Mas, ao mesmo tempo, não tem problemas em admitir que o português dos dois lados do Atlântico é tão diferente que quase parecem ser duas línguas: «Tem muita gente que leva a mal quando se diz que nós falamos brasileiro, mas eu não levo.» Ruth Manus concorda: «No Brasil existe uma certa mágoa, até ofensa, quando os portugueses dizem que a gente fala brasileiro, porque nós falamos português, a matéria da escola é língua portuguesa. Mas agora que estou cá eu já não me ofendo. Nós falamos brasileiro mesmo."
Uma língua para o mundo
Sílvio Nascimento nasceu no Lubango, no interior de Angola, há 31 anos, numa família «humilde mas que dava muita importância à educação». Aprendeu a ler e a escrever com cinco anos, com a exigente tia Manuela, que não lhe perdoava os erros e incentivava a ler livros em bom português, antes mesmo de ele ir estudar para um colégio de madres. «Sempre me soube expressar muito bem, tinha um português muito cuidado e isso tornava-me diferente dos outros miúdos, que falavam muito calão», recorda.
Quando começou a fazer teatro, aquilo que poderia ser visto como uma vantagem acabou por se tornar o seu "calcanhar de Aquiles": «No Lubango, a maioria das peças tinha temas rurais e eu não falava como as pessoas da terra, isso punha em causa o meu profissionalismo, tive que me esforçar bastante.» Mas ator que é bom ator aprende a falar de qualquer maneira, não é? E foi isso mesmo que Sílvio fez, até ganhar o prémio de melhor ator do Lubango em 2006.
Foi preciso passarem alguns anos, e muitos palcos pisados em Luanda, para que a língua portuguesa se tornasse uma verdadeira vantagem para Sílvio. Em 2016 teve oportunidade de se mudar para Portugal para participar na novela da SIC Amor Maior e, depois, apresentou o programa Duelo de Estrelas, no canal Mundo Fox. Por estes dias, podemos vê-lo nas novelas Paixão e Vidas Opostas, como apresentador do programa Bem -Vindos, na RTP África e ainda como estrela na série do Youtube The Gentleman – um projeto do músico [angolano] C4Pedro. Em junho, chega ao cinema com o filme Linhas de Sangue, realizado por Sérgio Graciano e Manuel Pureza.
«A língua portuguesa une-nos», diz Sílvio Nascimento. «Para mim é ótimo porque posso fazer o meu trabalho noutros países, sem constrangimentos. E também chegar a um público maior. Mas é importante que se fale a língua correta, do dicionário, não é o calão» – deixa como aviso aos mais novos.
Essa era também uma ideia que Marisa Carvalho repetia muitas vezes aos seus alunos, quando dava aulas de expressão oral e escrita na Universidade de Santiago, em Cabo Verde. Esta antiga jornalista portuguesa, atualmente com 39 anos, mudou-se para o arquipélago em 2014, depois de ficar desempregada e de o seu marido cabo-verdiano ter conseguido um bom emprego na cidade da Praia. Sílvia dava aulas a alunos de gestão, informática e outros cursos e todos eles, claro, falavam português: «A língua portuguesa é um canal, é uma porta que se abre para o mundo. Isso é muito valioso.»
No entanto, acontece uma coisa curiosa: quando está a trabalhar, Marisa fala com os colegas em português, mas quando sai para tomar café com esses mesmos colegas começam todos a falar crioulo: «As nossas conversas são uma salganhada», ri-se. «Em Cabo Verde, o português é a língua oficial, no Governo, na escola, em todas as instituições, é a língua das reuniões e dos documentos. É uma ferramenta de trabalho. Mas não é a língua materna, a verdade é que na rua toda a gente fala crioulo», explica Marisa Carvalho. Também ela teve de aprender crioulo. «Se eu falar português numa loja, isso cria logo uma distância. O crioulo é uma língua de proximidade.»
Além de aprender crioulo, teve ainda de aprender as particularidades do português falado em Cabo Verde, que é ligeiramente diferente do de Portugal. Por exemplo, se aqui é comum dizer que uma pessoa é fofinha, significando que é «querida», em Cabo Verde fofa é «gorda» e pode ser ofensivo. Outra expressão problemática: «pitada de sal». «Pitada quer dizer 'vagina'. Usei uma vez e nunca mais!"
Hoje em dia, Marisa é diretora de gabinete da ministra da Educação e Família e Inclusão Social e acompanha de perto os esforços do Governo para incluir o português no ensino logo desde a pré-primária. «Tentamos que a aprendizagem seja gradual para que quando chegam ao 1.º ano o choque não seja tão grande e as crianças aprendam mais facilmente a escrever», afirma. «Temos que entender que o português e o crioulo não são línguas inimigas, são complementares.»
Uma segunda língua
A primeira vez que Richard Zimler se lembra de ter ouvido falar português foi já adulto: «Foi o Alexandre a falar ao telefone com os pais. Não percebi uma palavra mas achei maravilhoso». Isto terá sido pouco depois de se conhecerem, em 1978.
Em 1990, o escritor norte-americano mudou-se para Portugal com Alexandre Quintanilha, que é atualmente seu marido. Nessa altura, sabia já algumas palavras em português pois costumavam vir cá regularmente. «Sabia pedir um chá ou um café e um bolinho de bacalhau», conta. Mas quando se apresentou aos seus alunos de jornalismo no primeiro dia de aulas na Universidade do Porto, convencido de que poderia dar as aulas em inglês, percebeu que teria de aprender português se queria ser entendido: «Não tive aulas, aprendi sozinho. Comecei por aprender 50 adjetivos que eram essenciais para as minhas aulas, como notícia, revista, jornal, etc. Aprendi cinco verbos no presente e alguns adjetivos. E depois fui aprendendo mais. Uma coisa que me ajudou bastante foi ver muitos programas de televisão em inglês com legendas em português.» E também ajudou o facto de se esforçar ao máximo para falar em português com toda a gente, mesmo que muitas vezes fosse mais fácil falar inglês.
«Falava um português caricato e era frustrante para mim porque eu sou escritor e tenho muito vocabulário em inglês. Levei uns quatro ou cinco anos até ter um português aceitável», diz. No entanto, hoje em dia, fala praticamente sem erros e tem um conhecimento da língua (dos tempos verbais e até das regras gramaticais) que será certamente muito superior ao da maioria dos portugueses. «Sempre que falo português há um pequeno eu dentro de mim que acha surpreendente o facto de eu conseguir falar assim tão bem uma língua que não é a minha língua materna, sempre achei que isto não ia ser possível», conta Richard Zimler.
Mas se falar é fácil, escrever é bem mais difícil. Os seus livros são sempre escritos em inglês e depois traduzidos. A primeira vez que tentou escrever diretamente em português foi com Se eu fosse (2014), um livro infantil, com frases muito simples. O primeiro «livro com uma história» que escreveu logo em português foi também um livro infantil, O Cão que comia chuva (2016): «Foi um desafio enorme. Obrigou-me a melhorar. Claro que pedi a várias pessoas para reverem o texto. Mas fiquei muito feliz por conseguir.» De tal forma, que depois disso continuou a escrever em português. «Adoro! A melhor droga alucinogénica que me podem dar é aprender uma segunda língua. Abre vias no nosso cérebro que antes eram minúsculas.»
Cf. As diferenças entre o português de Portugal e o português do Brasil + Quando falar português em Portugal, não basta! + 9 Povos de Origem Portuguesa que Não Conhecia
texto publicado, da autoria da jornalista Maria João Caetano no"Diário de Notícias" do dia 5 de maio de 2018.