DÚVIDAS

Pressentir e semântica verbal

Há dias recebi uma mensagem de que transcrevo este excerto:

«Temos ainda pendente o assunto X, pelo que o pressinto para a possibilidade de, quando regressar de Paris, podermos reunir para tratarmos disso».

Confesso que nunca me deparei com este uso do verbo pressentir que parece estar ali por prevenir, avisar ou alertar.

Conjeturei, apenas como hipótese, uma possível contiguidade semântica entre pressentir e avisar ou alertar. Um pressentimento acaba por ser uma espécie de aviso e, portanto, por extensão, usar-se-ia o verbo pressentir por avisar.

Para além desta hipótese porventura, ou certamente, rebuscada ou fantasiosa, o que pergunto é: conhecem este uso peculiar do verbo pressentir?

Muito obrigado mais uma vez.

Resposta

O caso apresentado é insólito e pode muito bem configurar não mais do que uma troca involuntária de verbos.

Na verdade, na escrita de textos eletrónicos acontece muitas vezes que o dicionário automático de apoio à escrita apresente soluções lexicais de configuração inicial semelhante, como é o caso de prevenir que partilha com pressentir o elemento pre- e que, como verbo da 3.ª conjugação (terminada em -ir), também exibe a vogal i na 1.ª pessoa do singular do presente do indicativo: pressinto, previno.  Será, pois, plausível que o uso em questão resulte de um erro induzido pelo uso apressado das letras tecladas e das opções facultadas pela ferramenta de texto num processador de texto.

No entanto, pode também pensar-se que não há gralha (eletrónica ou outra) e que o uso em questão manifesta a intenção de tirar partido das potencialidades sintáticas e semânticas do verbo pressentir. Com este pressuposto, deve observar-se que se trata de um caso muito marginal e algo discutível.

Na verdade, enquanto prevenir é um verbo que tem uma componente semântica causativa, pois denota uma ação que leva alguém a outra ação ou a mudar de estado, com o verbo pressentir, à semelhança de outros verbos de perceção e de crença e conhecimento, o sujeito («eu pressinto») é sede (experienciador) da sensação e parece impedido de funcionar como agente. Sendo assim, «pressentir alguém» não pode ser equivalente a «prevenir alguém»: o uso de pressentir numa frase ativa leva a realizar ou a subentender um sujeito – «(eu) pressinto» – que tem o papel de experienciador1,  pois, ao dizer-se «pressinto-o», dá-se conta de um estado subjetivo cujo conteúdo é o da sensação de proximidade de alguém («pressinto o João») ou de alguma coisa («pressinto a tempestade/a chegada dele») no espaço ou no tempo.

É esta a descrição do verbo nas fontes consultadas1, e, mesmo fazendo pesquisa das ocorrências de pressentir numa coleção de textos literários e não literários do século XIII à contemporaneidade (Corpus do Português, de Mark Davies), a conclusão é a de que falta ao argumento externo de pressentir a agentividade associada a prevenir ou a sinónimos como avisar ou alertar.

Resta mencionar a possibilidade de um erro ortográfico, levando a confundir precintar com pressentir, já que as formas da 1.ª pessoa do singular de ambos os verbos são homófonas (precinto e pressinto). Tal confusão, no entanto, é altamente improvável, porque precintar significa «cingir com precinta (faixa)», denotando uma ação com resultado concreto, longe, portanto, do efeito psíquico e cognitivo sugerido por pressentir, prevenir, avisar ou alertar.

 

1 Nos estudos gramaticais mais especializadas, diz-se que, numa frase ativa, o verbo pressentir, como tantos outros, tem associado um argumento externo que se realiza como sujeito frásico – «ele pressente a tempestade» – e um argumento interno que se realiza como complemento direto – «ele pressente a tempestade» – ver "Argumentos internos, externos e adjuntos do predicador" . Os termos experienciador e agente também fazem parte de estudos especializados e enquadram-se nos tipos de função e relação semântica (os chamados papéis temáticos como tema, agente, alvo, locativo, experienciador) que são estabelecidos pela predicação associada a uma frase – cf. "O significado de papel temático".

2 Dicionários de verbos consultados: W. Busse, Dicionário Sintáctico de Verbos Portugueses; J. Malaca Casteleiro, Dicionário Gramatical de Verbos; Celso Pedro Luft, Dicionário Prático de Regência Verbal; Francisco Fernandes, Dicionário de Regimes Substantivos e Adjetivos.

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