DÚVIDAS

Pouco com graus dos adjectivos

Qual o grau do adjetivo inteligente na frase «João é pouco inteligente»?

Na frase «João é muito inteligente» não há dúvida quanto ao grau do adjetivo: superlativo absoluto analítico.

Entretanto, as gramáticas não contemplam entre os graus do adjetivo o caso da frase objeto da pergunta («João é pouco inteligente»), em que o advérbio de intensidade («pouco») modifica o adjetivo («inteligente») expressando diminuição, inferioridade no grau da qualidade expressa pelo adjetivo, sem comparação ou relação com outros seres. Vejam-se as definições de várias gramáticas do grau superlativo absoluto: — O superlativo absoluto «denota que um ser apresenta em elevado grau determinada qualidade» (Celso Ferreira da Cunha, Gramática da Língua Portuguesa, 2.ª, FENAME, Rio de Janeiro, 1975, p. 258).

— «Grau superlativo absoluto: quando a qualidade de um ser é expressa em grau máximo, sem comparação com outro ser» (Agostinho Cadore, Curso Prático de Português, 2.ª edição, Editora Ática, 1994, p. 138).

— «Superlativo absoluto é o que exprime a qualidade no mais elevado grau, sem comparação» (Artur de Almeida Tôrres, Moderna Gramática Expositiva da Língua Portuguesa, 3.ª edição revista e ampliada, Editora Fundo de Culturas S. A., Rio de Janeiro, 1959, p. 81).

— «O Superlativo indica que a qualidade do ser ultrapassa a noção comum que temos dessa mesma qualidade (...) [neste caso], a superioridade é ressaltada sem nenhuma relação com outros seres. Diz-se que o superlativo é absoluto ou intensivo» (Evanildo Bechara, Gramática Escolar da Língua Portuguesa, Editora Lucerna, Rio de Janeiro, 2006, pp. 112/113).

— «O superlativo absoluto (...) analítico [se constrói] com a ajuda de outra palavra, geralmente um advérbio indicador de excesso — muito, imensamente, extraordinariamente, excessivamente, grandemente, etc.» (Celso Cunha e Luís F. Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 3.ª edição revista, 15.ª impressão, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2001, pp. 255/256).

Como se vê das definições acima, o superlativo absoluto analítico sempre supõe que a qualidade expressa pelo adjetivo está sendo intensificada «para mais» (ex: «muito inteligente»); mas no caso de intensificação «para menos» — diminuição, inferioridade — (como é o caso de «pouco inteligente»), não se fala em superlativo absoluto.

As gramáticas de Domingos Paschoal Cegalla, Luiz Antonio Sacconi, Nicola & Infante, nas edições que consultei, não trazem a definição do superlativo absoluto, mas todos os exemplos que estes autores listam para o superlativo absoluto (bem como os gramáticos das citações acima) são de frases gradações com intensificação «para mais» («muito inteligente», «enormemente forte», «excessivamente grande», etc.).

Assim, o grau do adjetivo expresso na frase «João é pouco inteligente» não se encaixa nem com a definição de superlativo absoluto trazida pelas gramáticas consultadas, nem com nenhum dos exemplos que elas arrolam.

Em «João é muito inteligente» se dá a ocorrência de: modificação do adjetivo inteligente pelo advérbio de intensidade muito. Neste caso, diz-se que esta construção é a forma de conferir o grau superlativo absoluto ao adjetivo inteligente.

Entretanto, em «João é pouco inteligente», em que ocorre a mesma construção (advérbio de intensidade + adjetivo), as gramáticas calam quanto ao grau do adjetivo.

Ou seja: advérbio de intensidade «para mais» — quero dizer, indicando superioridade — («muito») + adjetivo: forma o grau superlativo absoluto;

mas advérbio de intensidade «para menos» — ou seja, diminuição, inferioridade — («pouco») + adjetivo: não formaria grau?

Resposta

Obrigada, antes de mais, prezado consulente, pela síntese apresentada, que fundamenta — e clarifica! — muito bem a sua dúvida.

Pudera eu, de igual modo, fundamentar as propostas que avanço...

Ocorre-me, antes de mais, dizer que, nestas coisas da rotulagem dos fenómenos linguísticos aparece, muitas vezes, um gato escondido com o rabo de fora… E a sua pergunta ilustra, afinal, uma das situações em que tal acontece.

Consultando algumas gramáticas, pouco mais encontrei do que mais do mesmo, ou seja, mais definições em tudo idênticas às que o consulente apresenta. Ana Maria Brito, na Gramática da Língua Portuguesa, de Mira Mateus e outras, Lisboa, Editorial Caminho, 5.a ed. revista e aumentada, 2003, diz que, na formação do superlativo absoluto analítico:

«Igualmente podem usar-se expressões nominais quantificadoras:

(65) a) Uma rapariga um pouco triste.

b) Um livro um bocado maçador.

c) O tio estava meio zangado.

d) Um tipo nada simpático (nada indica a ausência da qualidade expressa pelo adjectivo)», p. 388/389.

Ora, se no exemplo b) podemos considerar a existência de um sentido de superioridade, equivalendo «um bocado maçador» a «muito maçador», nos restantes casos não creio que exista tal superioridade, chegando-se mesmo, em d), a uma situação em que, como a autora refere, a qualidade designada pelo adjectivo é inexistente. Porém a autora não propõe uma classificação diferente para estes casos, incluindo-os no grau superlativo absoluto analítico.

Procede da mesma forma, ainda que para o grau do advérbio, Dílson Catarino, na sua gramática on-line, quando diz: «O advérbio flexiona-se no grau superlativo absoluto analítico por meio de um advérbio de intensidade como muito, pouco, demais assaz tão, tanto…»

Parece que a atitude que, aqui e ali, vem sendo tomada é a de manter a classificação já conhecida e isolar, explicando separadamente, casos periféricos que podem ser utilizados na construção do superlativo. Uma outra solução seria assumir que, tal como acontece no comparativo e no superlativo relativo, também no superlativo absoluto há indicadores de superioridade e de inferioridade. No entanto, ao considerar-se esta solução haveria igualmente que ter em conta que, no caso do superlativo absoluto analítico, o que está em causa não é a qualidade de entidades que são comparadas (o superlativo relativo também pressupõe a existência de mais de uma entidade), mas, sim, a própria qualidade, se tal se pode dizer, do adje{#c|}tivo em si mesmo. Será por essa razão que esta solução não é apadrinhada por nenhum estudioso consultado?

Até que apareçam estudos a esclarecer este caso, consideremos que o adjectivo inteligente na expressão «pouco inteligente» está no grau superlativo absoluto de superioridade, fazendo o mesmo para outras situações como, por exemplo, para o adjectivo morto em «Chegou meio morto de cansaço»…

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