DÚVIDAS

Pontuação no discurso directo

Tenho uma pequena dúvida relativamente a esta questão, que as perguntas no vosso arquivo não me esclareceram completamente.

Concordamos que podemos construir um discurso directo mais ou menos assim:

— Amanhã vai chover — disse o Manuel. — O céu está muito escuro.

Por uma questão de coerência com as normas ortográficas (embora se conceda alguma liberdade de estilo em alguns casos), o ponto final do discurso do narrador encerra também a primeira afirmação do diálogo, começando a fala do narrador em minúsculas.

Mas veja-se este caso:

— Amanhã vai chover. — O Manuel voltou-se da janela para a sala. — O céu está muito escuro.

Ora, não temos aquele momento de explicação do diálogo pelo narrador (apontando o tom com que afirmou, se afirmou ou exclamou, se foi este ou outra personagem a falar…), mas uma informação contextualizadora diferente (neste caso, cinética), que complementa, mas que não comenta o acto do falante.

Assim sendo, a pontuação tal como assinalei está correcta, ou admite-se outra representação?

Em inglês parece muito comum esta situação, substituindo-se pelas aspas os nossos mais tradicionais sinais de pontuação do discurso directo, bem como a criação de núcleos de sentido, parágrafo a parágrafo, conjugando-se em cada um deles a fala de um personagem com o que o narrador tem a dizer sobre ele.

Obrigada.

Resposta

A fim de responder à sua pergunta, convém começar por analisar o primeiro exemplo, que não oferece dúvidas. Convém também recordar as funções do travessão no diálogo, a saber:

(1) — Dois travessões, quando servem para intercalar uma frase (à semelhança do que acontece com as vírgulas ou os parênteses).

(2) — Um travessão, na mesma situação, mas no caso de a frase intercalada terminar o período.

(3) — Um travessão, como sinal de introdução do discurso directo.

O que se pretende é articular discurso directo com  indirecto. A fala da personagem é:

Amanhã vai chover. O céu está muito escuro.

A formulação apresentada pela consulente é a seguinte:

— Amanhã vai chover — disse o Manuel. — O céu está muito escuro.

Neste exemplo, o primeiro travessão serve para introduzir a fala da personagem (3), e o segundo, para separar o que é fala da personagem do que é discurso do narrador. O primeiro ponto justifica-se porque termina o período (2). O terceiro travessão é de novo sinal de introdução do discurso directo e termina com a pontuação respectiva. Como o locutor é o mesmo, não há mudança de linha.

Note que, se as duas frases da personagem fossem separadas por vírgula e não por ponto («Amanhã vai chover, o céu está muito escuro»), a formulação do diálogo já seria:

— Amanhã vai chover — disse o Manuel —, o céu está muito escuro.

A vírgula é colocada no fim da intercalação marcada pelos dois travessões e o resto da fala continua em minúsculas.

Os diálogos também podem vir entre aspas, usando-se o travessão para separar o discurso directo do indirecto:

«Amanhã vai chover» — disse o Manuel —, «o céu está muito escuro».

«Amanhã vai chover» — disse o Manuel. «O céu está muito escuro.»

Vejamos agora o outro exemplo apresentado:

— Amanhã vai chover. — O Manuel voltou-se da janela para a sala. — O céu está muito escuro.

Neste exemplo, surgem os travessões que introduzem o diálogo e respectiva pontuação (1.º e 3.º travessões). Para separar o discurso directo do indirecto, a consulente utiliza um travessão, mas numa situação diferente da dos exemplos anteriores.

O procedimento canónico, nestas situações, é fazer a separação através da mudança de linha:

— Amanhã vai chover.

O Manuel voltou-se da janela para a sala:

— O céu está muito escuro.

No entanto, também pode acontecer um travessão marcar a mudança do locutor para o narrador, como acontece no exemplo da consulente. Escritores contemporâneos, como Lídia Jorge, disso fazem uso. Exemplo: «Como assim, Dr. Campos? Como assim?» Discutiram. (Combateremos a Sombra, 1.ª ed., 2007, pág. 131).

Outra solução é optar por aspas em vez de travessões, como já foi referido:

«Amanhã vai chover.» O Manuel voltou-se da janela para a sala. «O céu está muito escuro.»

A segunda fala pode ainda ser anunciada utilizando-se os dois-pontos ou o travessão:

«Amanhã vai chover.» O Manuel voltou-se da janela para a sala: «O céu está muito escuro.»

«Amanhã vai chover.» O Manuel voltou-se da janela para a sala «O céu está muito escuro.»

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