DÚVIDAS

Poema do afinal

«Poema do afinal

No mesmo instante em que eu, aqui e agora,
Limpo o suor e fujo ao Sol ardente,
Outros, outros como eu, além e agora,
Estremecem de frio e em roupas se agasalham.

Enquanto o Sol assoma, aqui, no horizonte,
E as aves cantam e as flores em cores se exaltam,
Além, no mesmo instante, o mesmo Sol se esconde,
As aves emudecem e as flores cerram as pétalas.

Enquanto eu me levanto e aqui começo o dia,
Outros, no mesmo instante, exactamente o acabam.
Eu trabalho, eles dormem; eu durmo, eles trabalham.
Sempre no mesmo instante.

Aqui é Primavera. Além é Verão.
Mais além é Outono. Além, Inverno.
E nos relógios igualmente certos,
Aqui e agora,
O meu marca meio-dia e o de além meia-noite.

Olho o céu e contemplo as estrelas que fulgem.
Busco as constelações, balbucio os seus nomes.
Nasci a olhá-las, conheço-as uma a uma.
São sempre as mesmas, aqui, agora e sempre.

Mas além, mais além, o céu é outro,
Outras são as estrelas, reunidas
Noutras constelações.

Eu nunca vi as deles;
Eles
Nunca viram as minhas.

A Natureza separa-nos.
E as naturezas.
A cor da pele, a altura, a envergadura,
As mãos, os pés, as bocas, os narizes,
A maneira de olhar, o modo de sorrir,
Os tiques, as manias, as línguas, as certezas.

Tudo.
Afinal
Que haverá de comum entre nós?
Um ponto, no infinito.»

Acerca deste poema de António Gedeão, queria saber qual o significado das duas últimas estrofes.

Obrigado e continuação de um bom trabalho.

Resposta

A primeira dificuldade que sinto é em delimitar a sua questão. Com efeito, a assumir como certa a sua transcrição do poema, as duas últimas estrofes são

o dístico:

«Afinal
Que haverá de comum entre nós?»


e o monóstico (ou verso isolado):

«Um ponto, no infinito.»

Em outras representações a situação não melhora, pois o dístico transforma-se em dois monósticos…

«Afinal
Que haverá de comum entre nós?»

A segunda dificuldade advém da característica do texto. Como posso indicar o significado, que se pretende único, de um texto poético que é, por natureza, plural? Analisemos, ainda assim, o excerto:

«Afinal
Que haverá de comum entre nós?
Um ponto, no infinito.»

Ele é composto por uma pergunta e uma resposta.

Na pergunta, interroga-se o poeta acerca do que haverá de comum entre ele (e, por ele, em cada homem, em todos os homens) e o seu antípoda, ou seja, aquele que vive exactamente num lugar diametralmente oposto.

Como resposta, é-nos dito que o que une todos os homens (tal como a ele poeta e ao seu antípoda) é um ponto que pode ser interpretado como a própria Terra, que, numa perspectiva cósmica, será isso mesmo: um ponto, um pontinho só, no infinito.

Há ainda a hipótese de se referir ao excerto que segue, composto por uma sextilha e pelos restantes versos:

«A Natureza separa-nos.
E as naturezas.
A cor da pele, a altura, a envergadura,
As mãos, os pés, as bocas, os narizes,
A maneira de olhar, o modo de sorrir,
Os tiques, as manias, as línguas, as certezas.

Tudo.
Afinal
Que haverá de comum entre nós?

Um ponto, no infinito.»

Se a sua dúvida recai sobre este excerto, poderemos dizer que no primeiro verso da sextilha se faz uma afirmação, que é explanada, pormenorizada, no resto da estrofe, para ser confirmada no monóstico «Tudo». E a este tudo que separa os homens opõe-se, tão-somente, um elemento comum, o ponto no universo, que, na sua pequenez (real à escala cósmica, mas não sentida como tal à escala humana), se contrapõe ao grande número de diferenças.

E, dessa forma, o poeta retira toda a força ao valor centrífugo, ou separador, das diferenças entre os homens, para valorizar, pela {#parcimónia|parcimônia} da escrita, o que os une.

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