O termo latino qua, na sua origem, é o feminino singular do pronome relativo qui, quae, quod («que, o qual, a qual») no caso ablativo. Ocorre, por exemplo, na conhecida locução sine qua non, que já foi objeto desta resposta no Ciberdúvidas.
Em latim clássico, qua era empregado também como advérbio, com o significado de «por onde», função cuja origem o filólogo italiano Egidio Forcellini (1688-1768), no seu Lexicon totius latinitatis, mais concretamente no terceiro volume (L-Q), explica do seguinte modo: est ellipsis pro ‘qua via’ (p. 984). Ou seja, qua seria uma elipse da expressão qua via, que significa «por que caminho». Refira-se, a talho de foice, que este advérbio complementa a forma quo (originalmente, o ablativo masculino do mesmo pronome), de que se serviam os romanos para exprimir a ideia de direção («aonde», «para onde»), como na conhecida expressão quo vadis? («aonde vais?», «para onde vais?»).
Ainda em latim clássico, o advérbio qua adquiriu, entre outros, o matiz de «como, por que meio, de que modo». Terá sido a partir desta aceção que o termo em questão, certamente em latim pós-clássico, e provavelmente pós-renascentista, terá passado a funcionar como preposição, assumindo o significado de «no papel de», «na função de», «na qualidade de», significado com que, no século XVII, terá entrado na língua inglesa, de acordo com o dicionário eletrónico Merriam Webster, o qual diz tratar-se de «uma palavrinha erudita mas oportuna» (a learned but handy little word), que terá levado um escritor do século XX a louvar a sua concisão (it does convey meaning economically), apesar de o termo ser por vezes reputado de «rebuscado ou pretensioso» (affected or pretentious).
Já Bryan A. Garner, no seu A Dictionary of Modern American Usage, publicado pela primeira vez em 1998, e citado neste fórum, chama a atenção para o facto de ser frequente o uso indevido de qua (‘qua’ [...] is often misused), chegando mesmo a afirmar que o termo «pouca falta faz em inglês» (is little needed in English)...
Em inglês jurídico, creio que o vocábulo terá certo uso, pois Maria Chaves de Mello inclui-o na parte de inglês-português do seu Dicionário Jurídico Português-Inglês-Português (Pergaminho, 6.ª edição, 1994), traduzindo-o por «Na qualidade de; considerado como» (p. 425). Não encontro, porém, qualquer referência a qua no Dictionary of Law, compilado por Elisabeth Martin (Oxford University Press, 3.ª edição, 1996)...
Quanto ao trecho referido pelo nosso consulente, provém o mesmo de um ensaio, intitulado What is an Aesthetic Property?, cuja tradução integral, da autoria de Vítor Guerreiro, se pode ler aqui e cujo texto integral se pode consultar aqui, extraído da obra Aesthetic Concepts: Essays After Sibley (org. E. Brady e J. Levinson, Oxford University Press, 2001), da autoria de Eddy Zemach. Neste ensaio, o autor usa a preposição qua cinco vezes, em itálico, sempre antes do mesmo substantivo, no singular ou no plural (object ou objects). O tradutor verteu sempre por qua, também em itálico. Fez mal, fez bem? É difícil de aferir. Depende do objetivo da tradução e do seu público-alvo. Se aquela se destinava a um público especializado, por exemplo, na área da filosofia (o que desconheço), e se esta preposição neolatina é encontradiça no jargão habitual da referida área de especialização (o que também desconheço), poderá ter agido com propriedade, provavelmente com o intuito de manter o registo. Caso a publicação se destine a um público não especializado, seria mais curial traduzir qua por «como», por ser esta a forma habitual de exprimir o conceito em português corrente, até porque não encontro o termo nos dicionários que costumo consultar no nosso idioma.
Refira-se, a propósito, que a preposição qua também se usa em holandês, embora com um significado algo diferente. O Dicionário de Neerlandês-Português (Porto Editora, 2002) de Cornelis H. A. Keesom van Haringcarspel (1917-2005) tradu-la da seguinte forma: «no que diz respeito a; relativamente a; quanto a» (p. 519). Já em Interlíngua, qua mantém o significado que terá adquirido em latim tardio e que passou para a língua inglesa: o Interlingua English Dictionary, publicado em 1951, inclui esta preposição (que erradamente classifica como advérbio) e tradu-la por «as, in the capacity of, qua» (p. 316). O seu uso, porém, não é frequente, e só me recordo de a encontrar nalguns escritos de autores nórdicos.
P. S. Agradeço ao senhor Ruud Harmsen, holandês de gema e amante da língua portuguesa, a pesquisa que empreendeu para descobrir as datas de nascimento e falecimento de Cornelis H.A. Keesom van Haringcarspel.