DÚVIDAS

O uso da locução «até que»

«Cantarei até que a voz me doa» ou «Dormirei até que esteja recuperado» são expressões que considero correctas e que não me causam dúvida: «até que» está associado ao limite temporal da acção traduzida pelo verbo.

É no entanto cada vez mais frequente ouvir dizer «até que nem é caro» ou «até que me sinto bastante bem», em que a utilização do que me parece inadequada. Eu digo «até me sinto bastante bem» ou «até nem é caro». Estou certo, estou errado, ou é indiferente?

Parece-me que a inclusão do que nestes dois exemplos vem do português brasileiro, que cada vez mais penetra o português europeu (o que «até nem é mau» ou «até que nem é mau»?).

Agradeço que me esclareçam esta dúvida: posso usar ambas as formas? Alguma delas é incorrecta?

Muito obrigado.

Resposta

Começo por enunciar algumas funções que o morfema que pode desempenhar:

(1) Pronome relativo: «Já li o livro que me ofereceram.»

(2) Conjunção completiva: «Julgo que é um bom livro.»

(3) Determinante interrogativo: «Que livro te ofereceram a ti?»

(4) Pronome interrogativo: «Que compraste na feira do livro?»

(5) Conjunção explicativa: «Despacha-te a comprar, que está quase a esgotar!»

(6) Conjunção causal: «Não pude comprá-lo, dado que[1] está esgotado!»

(7) Conjunção temporal: «Venderam-se muitos livros, até que acabaram por esgotar!»

(8) Conjunção consecutiva: «Esse livro é tão bom, que já esgotou!»

(9) Conjunção comparativa: «Este livro é mais caro do que esse.»

(10) Partícula enfática: «Este livro é que já está autografado.»

(11) Partícula expletiva: «Quase que se ia esgotando, o livro!»

É nesta última função que se enquadra o morfema que das frases que o consulente apresenta: «até que nem é caro» e «até que me sinto bastante bem».

Este que é designado partícula expletiva, por ter um valor semântico vazio, podendo ser eliminado da frase, sem originar qualquer agramaticalidade:

(12) «Quase se ia esgotando, o livro!»

(13) «Até nem é caro, o livro.»

(14) «Até me sinto bastante bem!»

Por conseguinte, não se trata de um uso inadequado do morfema que, mas, sim, de uma das muitas funções que o mesmo pode desempenhar — partícula expletiva.

Disponha sempre!

[1] Nos casos (6), (7), (8) e (9), o morfema que forma com outras palavras uma locução. Segundo Celso Cunha e Lindley Cintra, designam-se locuções conjuntivas. Trata-se de conjunções formadas da partícula que antecedida de advérbios e de preposições: desde que, antes que, já que, até que, etc.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa