DÚVIDAS

Frases consecutivas com valor exclamativo

Minha dúvida é a seguinte: existem em português as chamadas "Estruturas exclamativas com valor consecutivo"? Quero dar alguns exemplos para os senhores corrigirem.
1. «O que terão dito para ela, que não pára de chorar!»
2. «Quem teria saído do salão da conferência, que as pessoas não deixavam de murmurar!»
3. «Qual é que ela terá elegido, que não fazem mais do que falar disso!»
4. «Como é que a cidade será em breve, que ainda não construíram as ruas!»
5. «Como foi que bebeu, que chegou à casa completamente bêbado!»
6. «Como estava cansado, que tive que acordá-lo um par de vezes no cinema!»
7. «Onde estava, que chegou à casa com as calças rasgadas!»
8. «Onde é que vive, que não quer nem dizer-nos!»
9. «Quanto é que comeu, que não ficou nada na geladeira!»
10. «Quando é que ela ligou, que não a ouvi!»
Obrigado.

Resposta

Em grande número de construções do português é possível identificar outros sentidos para além do que é mais comummente associado a determinada estrutura. Esses sentidos não são todos analisados nas gramáticas e creio que não seria fácil serem-no, pois a sua ocorrência depende da criatividade linguística dos falantes que, em contexto, se expressam da forma que lhes parece mais eficaz, podendo produzir inúmeros enunciados que nunca ouviram e que poderão não voltar a repetir.
Os exemplos em apreço mostram que é possível produzir frases consecutivas que sejam exclamativas. Aliás, o facto de serem exclamativas não se prende com o tipo de relação que se estabelece na frase complexa. Prende-se, antes, com o contexto que leva o falante a optar por um dos tipos de frase ao seu dispor: declarativas, imperativas, interrogativas ou exclamativas. Por exemplo, na frase complexa «Está a chover, mas o João vai passear!» a relação estabelecida entre as duas frases inclui-se na coordenação adversativa e não deixa de ser igualmente exclamativa.
Relativamente às frases que submete à nossa apreciação, devo dizer, antes de mais, que todas elas são correctas no registo e na variante do português a que pertencem. Com efeito, são frases que correspondem a um registo informal e em que se percebe um tom coloquial (e que incluem, quase todas, uma interrogativa retórica – excepto a 6 e a 9 –, que deveria ser assinalada na pontuação, utilizando o ponto de interrogação seguido do ponto de exclamação). Além disso, embora na maioria dos exemplos se não vislumbrem marcas que identifiquem uma variante do português, as frases 1 e 9 são características do português do Brasil (PB):
1. O que terão dito para ela, que não pára de chorar?!
9. Quanto é que comeu, que não ficou nada na geladeira!
No caso de 1, em português europeu o complemento para ela seria substituído pelo pronome pessoal oblíquo lhe, como se pode verificar em 1.1
1.1 O que lhe terão dito, que ela não pára de chorar?!
Em 9 a diferença não é na estrutura mas no léxico utilizado. Em Portugal não se diria geladeira, dir-se-ia frigorífico, como em 9.1:
9.1 Quanto é que comeu, que não ficou nada no frigorífico!
O sentido do exemplo 4, retirado do contexto como está, parece estranho.
4. Como é que a cidade será em breve, que ainda não construíram as ruas?!
A primeira frase, interrogativa retórica, coloca uma questão sobre o aspecto futuro da cidade. Essa questão é desencadeada pela observação do que acontece no presente. A cidade no presente ainda não tem ruas, mas isso não impede que elas sejam construídas, pelo que a relação de consequência não é a mais adequada. Trata-se mais de uma hipótese à qual continua a faltar, saliento, o contexto para ser bem compreendida. A frase que poderia dar conta da crítica que parece subjacente seria por exemplo:
4.1 Como é que a cidade estará pronta em breve, se ainda não construíram as ruas?!»
Note-se que este exemplo é o único em que a interrogativa retórica se orienta para uma acção futura. É este facto que, a meu ver, inviabiliza a relação de consequência. 

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