A tomada de posição da consulente em relação à utilidade da gramática é algo que, apesar de parecer paradoxal — porque afirma que gosta de línguas e que «escrever é um dom» —, não nos surpreende. Porque é muito comum (sobretudo, para os professores de Português) ouvir-se precisamente perguntas do tipo: «Para que é que eu preciso de saber que amar, pensar, dizer são verbos e não nomes/substantivos, adjectivos, advérbios ou conjunções? Se eu uso bem as formas verbais quando falo ou escrevo, porque é que eu preciso de identificar que «eu fiz» está no pretérito perfeito do indicativo? O que importa é que eu fale ou escreva correctamente!»
Esse questionar o valor da gramática, assim como a aversão manifestada por muitos em relação a esse domínio dos estudos do Português, deve-se, essencialmente, ao facto de grande parte de tais falantes não sentir dificuldades no uso adequado da língua, revelando à-vontade tanto a nível do discurso oral como do escrito. Decerto que esse domínio da língua não foi adquirido ao acaso. Chama-se a esse «dom» saber intuitivo, que é fruto das aprendizagens que se foram fazendo, a partir de um determinado universo de referência, desde que se iniciou o contacto com a língua, resultante da reprodução do que se foi ouvindo do discurso dos pais e das pessoas com que se conviveu. Ora, se o ambiente em que se for criado se caracterizar pelo domínio a nível linguístico, é natural que a criança interiorize a estrutura correcta da língua e a utilize nas interacções verbais, revelando competências e saberes que foram adquiridos de forma implícita. Como é que se pode explicar o uso adequado de determinadas formas verbais bastante complexas por crianças de 3 ou de 4 anos, em fase pré-escolar, como, por exemplo, «Consigo» como resposta a uma questão do tipo «Consegues fazer isto?», em vez de seguir o modelo da construção de um verbo regular? Não seria mais natural que dissesse «Consego?» (por analogia com consegues, consegue), forma estranha, que agride o nosso ouvido e que o próprio computador não reconhece? É óbvio que esse saber intuitivo se deve à interiorização de uma prática do seu universo de referência.
Pode, por isso, correr-se o risco de se considerar de que não vale a pena estudar-se a gramática. Mas não é importante conhecer-se o funcionamento da língua? Alguém que use a língua com correcção deve poder saber as razões que estão por detrás da utilização de uma determinada estrutura e não de outra. Será que não tem dúvidas sobre qual a forma correcta a ser usada? Como reconhece situações de desvio, de erro e, também, de aceitabilidade? E em que é que se baseia para as explicar? Como resolve problemas no dia-a-dia sobre casos do tipo:
Diz-se «Está imprimido, ou impresso?», «Tinha prendido, ou preso?», «Foi morto, ou matado?», «Tinha morrido, ou morto?», «Está acendido, ou aceso?» , «Tinha roto, ou rompido?», «Eu vi-o, o vi, ou vi ele?», «Ele não deu a ela, não deu-lhe, ou não lhe deu?», «Esta garrafa é antiguíssima, ou antiquíssima?», «Ele é paupérrimo, ou pobríssimo?»; e alguém que nasceu em Lisboa pode ser designado somente por lisboeta? E não poderá, também, ser denominado de lisboês ou lisbonense, ou ainda olisiponense (com a variante olissiponense)? Ou esta última designação só pode ser usada para documentos oficiais como é o caso de Universidade Olissiponense? E, então, a denominação de alfacinha? É correcta? Escreve-se «Porque razão/motivo», ou «Por que razão/motivo»? Mas «porque» não quer dizer o mesmo que «por que»? Diz-se interveio, ou "interviu"? E é «Eles entreteram-se», ou «entretiveram-se»? Afinal, qual é a forma correcta: «Bem-vinda à empresa», ou «Benvinda à empresa»? Há estes dois termos?...
O «dom de escrever bem» de que a consulente fala não é, na realidade, um dom. É, sim, fruto de «situações ou cenários recrutados, para a realização de cada frase ou discurso, a partir do conjunto de competências, saberes e crenças que constituem os universos de referência dos locutores em presença» (Isabel Hub Faria, «Uso da Língua, interacção verbal e texto», in Mira Mateus et alli, Gramática da Língua Portuguesa, 6.ª ed., Lisboa, Caminho, 2003, p. 70). Para ganhar o estatuto de «dom», a escrita terá de ser literária, pois entra no domínio da arte, destacando-se pela beleza, pela pluralidade de sentidos ou polissemia, que a tornam intemporal.
No entanto, não podemos cair no erro de se pensar que o autor de um texto literário, um escritor (consagrado ou não) desconheça o funcionamento da língua. Todos eles têm o domínio da língua e, por isso, podem jogar com ela, gerando textos com construções invulgares em que a liberdade da escrita ganha vulto para a produção de novos sentidos. Não se iluda, cara consulente, nem Fernando Pessoa, nem Eça de Queirós, nem Bocage, nem o polémico Saramago descuram as questões linguísticas. Eles têm é a arte do privilégio da licença poética, que, por sua vez, lhes dá o poder de brincar com as regras gramaticais, mas é um jogo em que transparece o conhecimento explícito da língua.
Há várias perguntas que nos foram apresentadas em que os consulentes nos questionavam sobre a legitimidade de erro gramatical de Pessoa, de uso estranho do pronome «cujo/a» em Ensaio sobre a Lucidez, de Saramago, da ortografia insólita da expressão «entre sila e caribdes» em As Intermitências da Morte, de Saramago, da utilização de palavras, como «almadilha», que não figuram nos dicionários portugueses (do texto As Grutas, de Sophia de Mello Breyner, da construção ambígua no poema Endechas a Bárbara Escrava, de Camões…
Todas estas situações são exemplos da licença poética, são casos exemplificativos de que «literatura tem um sistema seu de signos e de regras de sintaxe de tais signos, sistema que lhe é próprio e que lhe serve para transmitir comunicações peculiares, não transmissíveis por outros meios» (Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, Coimbra, Almedina, 1983, p. 95).