Transcrevo aqui a estrofe 38 de canto I de Os Lusíadas:
«E disse assi: – “Ó Padre, a cujo império
Tudo aquilo obedece que criaste:
Se esta gente que busca outro Hemisfério,
Cuja valia e obras tanto amaste,
Não queres que padeçam vitupério,
Como há já tanto tempo que ordenaste,
Não ouças mais, pois és juiz direito,
Razões de quem parece que é suspeito.”»
A estrofe começa com uma frase destinada a introduzir o discurso directo: «E disse assi.» Esta frase introdutória poderia ser vista como uma oração subordinante, se fosse transformada de modo a ser complementada pela conjunção que, o que se traduziria no discurso indirecto («E disse, pedindo a Júpiter que…»). Como não é isso que acontece, deixo à parte esta pequena frase, considerando que é textual – mas não sintáctica – a relação entre ela e o discurso subsequente.
Desta maneira, resta-nos a longa frase complexa em discurso directo. Trata-se de um longo período, cheio de orações (ou frases) encaixadas. Para ela, proponho a seguinte divisão:
A. Oração subordinante: «Ó Padre, […]/ Não ouças mais […]/Razões […]»
Temos uma frase imperativa, com um vocativo, que é antecedente de uma oração relativa explicativa.
B. As outras orações são todas subordinadas, de diferentes tipos. Algumas são também subordinantes. Ora vejamos:
1. Oração subordinada adjectiva relativa explicativa (antecedente vocativo «Ó Pai»): «a cujo império/ Tudo […] aquilo obedece»
É de notar que classifico esta oração (ou frase) como explicativa, uma vez que dá informação adicional sobre o seu antecedente. Não a considero restritiva, porque o nome «Pai» tem valor de nome próprio e já está determinado, pelo que não admite modificadores restritivos (não se diz *«Pai inteligente,..», a não ser que toda a expressão seja usada convencionalmente para designar alguém que se chama «Pai Inteligente»; ver a nova terminologia portuguesa – TLEBS ).
2. Oração subordinada adjectiva restritiva (antecedente «tudo aquilo»): «que criaste»
Neste caso, trata-se de uma relativa restritiva, dado que esta frase (ou oração) modifica um antecedente («tudo»), definindo uma parte do domínio denotado pelo mesmo. Esta relativa está encaixada na oração descrita em 1.
3. Oração subordinada adverbial condicional (modifica o grupo verbal da frase classificada em A): « Se […] /Não queres…»
Esta oração (ou frase) é também subordinante, pois que tem o complemento oracional «...que [esta gente] padeçam vitupério»
4. Oração substantiva completiva: «... que [esta gente] padeçam vitupério»
Esta oração é, por sua vez, subordinante de três subordinadas («esta gente que busca outro Hemisfério», «Cuja valia e obras tanto amaste,» e «Como há já tanto tempo que ordenaste»; ver orações 5, 6 e 7).
Sublinhe-se que há aparentemente um erro de concordância na oração entre «esta gente» e «padeçam». No entanto, se nos lembrarmos de que gente é um nome colectivo, percebemos que, neste contexto, a concordância em número é semântica e não morfossintáctica. Acresce o facto de estarmos perante um texto literário, pelo que podemos atribuir função estilística a esta ocorrência, classificando-a de silepse (concordância ideológica; ver Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, pág. 625).
5. Oração adjectiva relativa restritiva (subordinante «que [esta gente] padeçam vitupério»): «esta gente que busca outro Hemisfério»
(ver comentário em 2.)
6. Oração subordinada adje(c)tiva relativa explicativa: «Cuja valia e obras tanto amaste»
O antecedente é uma expressão que já está definida; portanto, esta oração faculta informação acessória sobre o antecedente (ver comentário em 1)
7. Oração subordinada adverbial conformativa: «Como há já tanto tempo que ordenaste»
Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, pág. 604) explica que ocorre uma oração adverbial conformativa «quando a subordinada exprime um fato apresentado em conformidade com a declaração da principal como, conforme, segundo, consoante:
Conseguiu fazer o trabalho como lhe ensinaram. [itálicos do original a negro]»
Há ainda a expressão «há já tanto tempo que», a qual pode ser também interpretada como oração, mas cujo estatuto é mais próximo de uma construção com valor adverbial. Mereceria uma análise à parte, pelos problemas que levanta, mas vou considerá-la um constituinte não oracional que modifica o núcleo do grupo verbal «ordenaste»
8. Oração coordenada explicativa: «pois és juiz direito»
Sobre a sintaxe de pois leia-se esta resposta de Edite Prada.
9. Oração subordinada substantiva completiva: «[Razões] de quem parece»
A palavra razão tem um complemento que, neste caso, assume a forma de uma oração subordinada substantiva relativa sem antecedente. A nova terminologia prevê que este tipo de frases ocorra como complemento ou modificador do gupo verbal só na frase superior, isto é, na subordinante. Mas se uma substantiva completiva pode, como diz a nova terminologia, «saturar a estrutura argumental de verbos, adjectivos e nomes», não vejo porque não há-de uma relativa sem antecedente preencher a mesma função.
10. Oração subordinada substantiva completiva (subordinante «de quem parece»): «que é suspeito.»
Aqui temos mais uma completiva, a preencher o lugar de complemento do verbo parecer.
Deixo esta proposta de análise, que espero suscite muitos comentários dos nossos consulentes.