Quer tenhamos como referência as perspectivas linguísticas mais recentes – que classificam cujo/a, «a versão portuguesa do genitivo de um pronome relativo latino, [e que] está tradicionalmente ligado, em português, a uma posição e função de constituinte genitivo» (João Peres e Telmo Móia, Áreas Críticas da Língua Portuguesa, Lisboa, Caminho, 1995, p. 314), como um pronome ou constituinte relativo que se caracteriza por «marca[r] o genitivo» (Mira Mateus et alii, Gramática da Língua Portuguesa, 6.ª ed., Lisboa, Caminho, 2003, p. 664) –, quer nos reportemos a uma visão mais tradicional – segundo a qual cujo/a «é, a um tempo, um pronome relativo e possessivo» (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 17.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 350) –, verificamos que há unanimidade entre elas nos seguintes aspectos:
– a equivalência de cujo/a, a nível de sentido, a de quem, do/a qual, de que (o que lhe confere a categoria do genitivo);
– a flexão de gé[ê]nero e de número, concordando com a coisa possuída;
– a ocorrência em SN em início de uma relativa.
Tudo indica, portanto, que cujo/a está semanticamente associado à ideia de posse, de pertença, pois até a sua flexão depende do objecto possuído.
No entanto, na frase retirada do Ensaio sobre a Lucidez de José Saramago – «(...) que não se repetiria aqui uma vez mais aquela histórica fraude a que se dá o pitoresco nome de chapelada, cuja, não o esqueçamos, tanto se poderá cometer antes como durante ou depois do acto» –, o pronome cuja, que surge aí isolado, colocado entre duas vírgulas, parece destituído do sentido que lhe é, habitualmente, atribuído, uma vez que não está explícita a que realidade (possuída) se refere. Poder-se-ia, mesmo, incorrer no erro de se considerar tal utilização incorrecta…, se não nos apercebêssemos de que se trata de uma liberdade poética, própria de um texto literário, em que o estatuto de diferença se afirma pela pluralidade de sentidos que tal recurso pretende sugerir.
Estrutura insólita, que gera perplexidade no leitor atento, não foi, decerto, criada ao acaso pelo narrador, pois joga com as representações do código oral que são para aqui convocadas, parecendo querer desafiar a sensibilidade ou intuição de quem a lê. Ou não ouvimos já alguém dizer «a dita cuja…?», quando se quer referir a alguma pessoa/situação em especial, significando «aquela pessoa, a tal pessoa, a tal situação»?! Nessa frase do Ensaio sobre a Lucidez parece-me que o narrador, como a utilização de cuja após «chapelada», quis testar a capacidade de análise (e de lucidez) do leitor, pois cria a confusão entre «chapelada» e «fraude».
Da leitura que fiz, fiquei com a sensação de que o pronome «cuja» se refere a «fraude», palavra que se omite, porque já tinha sido dita. Repare-se se não faz sentido: «(...) que não se repetiria aqui uma vez mais aquela histórica fraude a que se dá o pitoresco nome de chapelada, cuja [fraude], não o esqueçamos, tanto se poderá cometer antes como durante ou depois do acto».
Apesar de bizarro, este é um exemplo de licença poética que nos recorda que «a literatura tem um sistema seu de signos e de regras de sintaxe de tais signos, sistema esse que lhe é próprio e que lhe serve para transmitir comunicações peculiares, não transmissíveis com outros meios» (Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, Coimbra, Almedina, 1983, p. 95), o que nos leva a concluir que «a gramática que permite descrever e explicar os textos literários não se pode identificar totalmente com a gramática da língua normal» (idem, p. 147).