O verbo poder, como dever, tem propriedades sintáticas que levam a considerá-lo como um semiauxiliar, e não exatamente como um auxiliar1.
Entre as características de poder como semiauxiliar, conta-se a de o infinitivo associado ter um funcionamento próximo de um domínio oracional. Se assim é, então, talvez se consiga explicar a deslocação e autonomia do domínio sintático do infinitivo, a gramaticalidade do se indeterminado e a impossibilidade da passiva sintética:
(1) Conhecer muitos lugares(,) pode-se.
(2) OK Conhecer muitos lugares, isso pode-se [fazer].
(3) *Conhecer muitos lugares, isso podem-se [fazer]
Em (1), admite-se que, na escrita, é fortemente aconselhável uma vírgula de forma a dar conta da deslocação do infinitivo associado ao modal poder, configurando assim um caso de topicalização.
Além disso, apresentam-se em (2) e (3) duas possibilidade de paráfrase: a primeira aponta, de algum modo, para a retoma globalmente apositiva de «conhecer muitos lugares» e para a ocorrência subentendida de fazer como pró-verbo, evidenciando que o verbo poder seleciona a estrutura de infinitivo ao modo de um oração («conhecer muitos lugares»); a segunda paráfrase é agramatical, a gramaticalidade da paráfrase anterior não é conciliável com a concordância de pode. Por outras palavras, em (1), a ocorrência de «pode-se» é elíptica.
Mesmo assim, aceitando a frase tal como se apresenta na pergunta – «Conhecer muitos lugares pode-se» –, é discutível que «conhecer muitos lugares» seja sujeito e «pode-se» configure um predicado, com se apassivante; portanto, poder não é verbo principal nem verbo transitivo direto que possibilite a leitura de se como partícula apassivadora. A tese de «conhecer muitos lugares» constituir sujeito não explicará, portanto, a impossibilidade de «conhecer-se muitos lugares pode».
Quanto a «conhecer muitos lugares vai-se», que, mais uma vez, na escrita, ganha maior aceitabilidade se se inserir uma vírgula – «conhecer muitos lugares, vai-se» –, não é evidente que esta não seja uma construção gramatical, visto que também pode ser legitimada pela consideração de uma topicalização. Convém assinalar que ir com infinitivo também se comporta como um semiauxiliar.
Sendo assim, sem negar que entre semiauxiliares modais e semiauxiliares temporais há diferenças quanto à compatibilidade com se apassivante e se interminado, não se vislumbra, para já, que seja plausível a distinção proposta pelo consulente quanto à concordância de poder e ir com a construção apassivante. Do mesmo modo, não se afigura aqui razão suficiente para sustentar que a distinção proposta tenha impacto normativo.
Finalmente, quanto ao post scriptum, não é possível confirmar a «diferença subtil» que o consulente deteta entre «pode-se conhecer muitos lugares» e «podem-se conhecer muitos lugares». Se diferença existe, ela encontra-se na semântica de se indeterminado, que não é equivalente a uma construção passiva, e na de se apassivador, este, sim, equivalente ou semelhante à passiva analítica.
1 Sobre semiauxiliares, ver Anabela Gonçalves e Teresa da Costa, (Auxiliar a) Compreender os Verbos Auxiliares: Descrição e Implicações para o Ensino do Português como Língua Materna, Lisboa: Edições Colibri e Associação de Professores de Português, 2002, pp. 63-82 e Eduardo B. Paiva Raposo, "Verbos auxiliares" in Gramática do Português, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2013.2020, pp. 1221-1281.