A forma cante tornou-se legítima no âmbito da norma-padrão pelo uso que lhe tem sido dado, o qual a levou a especializar-se como designação exclusiva desse canto que é típico de uma região – o Alentejo. O uso de regionalismos lexicais, morfológicos e fonéticos é aceitável em situações em que é necessário denominar uma realidade ou forma cultural circunscritas a certos territórios. Por exemplo, emprega-se a forma balho, e não baile, para referir certas festas populares do Alentejo e dos Açores, muito embora balho derive de balhar, variante não só arcaica mas também popular e regional de bailar.
[Nota do consultor (atualização em 21/01/2019) – Sobre a etimologia de cante, é este, já foi dito, um regionalismo que se especializou como denominação de um género musical da cultura tradicional alentejana. Mas, procurando levar um pouco mais longe a discussão das origens desta forma, poderá supor-se ter ela surgido como deturpação de canto, aparecida no contexto de uma cultura oral pouco ou nada letrada; no entanto, não se julgue que se trata de distorção comparável à adaptação popular de empréstimos provenientes de línguas estrangeiras. Na verdade, é possível enquadrar cante na fonologia dos dialetos centro-meridonais portugueses e na história do contacto dos dialetos meridionais românicos (o chamado "moçárabe") com os dialetos árabes e até berberes que se falaram na metade sul da Península Ibérica entre os século VIII e XIII (na região de Granada até mais tarde). A este respeito, a literatura tem apontado a tendência de os falares românicos do sul peninsular perderem o -o final das palavras do género masculino ou neutralizarem essa vogal, fazendo-a convergir com o -e final etimológico de outras (lume, monte, enxame...). Este fenómeno é hoje notável nos dialetos algarvios, em alguns dialetos alentejanos e até parece fazer-se sentir na atual pronúncia padrão do -o átono final. Considera-se, portanto, a hipótese de cante resultar de um fenómeno fonológico mais geral, definidor da própria evolução do latim no sul da antiga Lusitânia. Outra hipótese é a de cante constituir também uma variante não no plano da fonologia regional, mas, sim, no âmbito da formação de substantivos deverbais. Com efeito, são vários os verbos da 1.ª conjugação que permitem a formação de nomes terminados em -e final: atacar → ataque, embarcar → embarque, encaixar → encaixe, rematar → remate, sacar → saque. Não é de excluir que cante siga este modelo: cantar → canto. Já canto, embora etimologicamente relacionado com o latim cantus, -us, pode alinhar-se com os substantivos regressivos em -o (abraçar → abraço, desmaiar → desmaio, enganar → engano). É de assinalar que, em espanhol, se observa um fenómeno talvez paralelo ao descrito. Refiro-me ao facto de ao português canto corresponder o cognato castelhano canto. Contudo, nos dialetos andaluzes também se conhece cante, forma que se popularizou, por exemplo, na expressão «cante jondo», denominação de uma forma musical da cultura popular andaluza. Desconheço propostas etimológicas para interpretar o português cante como empréstimo com origem andaluza.]