DÚVIDAS

As figuras de estilo em A Cidade e as Serras

Não estou a conseguir identificar as figuras de estilo nas seguintes frases:

1. «O Jacinto depois vai encontrar uma criatura apenas humana, e tem um desapontamento tremendo!» (Penso que é uma prolepse.)

2. «Com efeito, era grande e forte a Joaninha. Mas a fotografia datava do seu tempo viço rústico, quando ela era apenas uma bela, forte e sã planta da serra.» (Estou na dúvida entre a metáfora, personificação e adjectivação.)

3. «A estrada não tinha sombras, mas o sol descia muito de leve, e roçava com uma carícia quase alada.»

4. «Os nossos cavalos caminhavam num passo pensativo, gozando também a paz da manhã adorável.»

5. «Hem? Fresquinho, leve, aromático, alegrador, todo alma!»

6. «Mão real, mão de dar, mão de quem vem de cima, mão já rara!»

Resposta

Muito frequentemente, há mais do que uma figura de estilo num só enunciado. Por isso, sempre que fizer este tipo de exercício, deverá analisar com atenção o discurso e relacioná-lo com as particularidades de cada recurso estilístico. Para além disso, a análise de um texto pressupõe subjetividade, o que implica que possa haver várias leituras sobre o mesmo. Portanto, não basta indicar as figuras de estilo de um texto, pois é preciso conseguir explicar o que o levou a retirar essas conclusões.

Da leitura que fizemos das frases indicadas, apercebemo-nos da presença de algumas figuras de estilo, de que se faz a seguinte síntese:

1. Relativamente à referência feita à possibilidade da presença de prolepse, não podemos deixar de assinalar que a prolepse é uma técnica da narrativa usada pelo narrador, em que é intencionalmente alterada a ordem dos acontecimentos, antecipando-se situações futuras. Não se trata, portanto, propriamente de uma figura de estilo.

Nessa frase, poder-se-ia pensar que estaríamos perante uma inversão ou anástrofe (alteração da ordem das palavras na frase) — em «uma criatura apenas humana» —, mas a verdade é que esse «apenas» está colocado antes de «humana», pois refere-se restritivamente a essa palavra, o que implica que essa é a sua posição lógica. Nessa expressão, o que se pode inferir é a presença de disfemismo (e de ironia), pelo facto de o narrador se referir à pessoa de que fala como «uma criatura apenas humana», transparecendo o olhar depreciativo face à expetativa que criara. Contrariamente ao elogio, perante o que vira, este narrador marca bem a desvalorização do objeto da sua observação: é uma criatura apenas humana, sem nada que a eleve a outro estatuto de distinção. Observa-se, também, nessa frase a aliteração (repetição se sons nasais muito idênticos: desapontamento tremendo) que conduzem à hipérbole em «um desapontamento tremendo» para evidenciar o que a personagem sofreu perante tal desilusão.

2. Nesta frase, verifica-se o recurso à adjetivação binária («grande e forte») e ternária («bela, forte e sã»), a inversão ou anástrofe (o sujeito — a Joaninha — está depois do predicado) e a metáfora (Joaninha = «planta da serra»).

3. Predomina, nesta frase, a sugestão visual e a da sensação do tato («roçava», «carícia», «muito de leve»), do que se retira a figura da sinestesia. Para além desta, verifica-se a presença do animismo («sol descia, roçava»).

4. A hipálage é a figura que se destaca (em «passo pensativo» e «manhã adorável»).

5. A presença da interrogação retórica («Hem?»), da sinestesia [sensação do tato («fresquinho, leve»), do olfato («aromático»), da audição («alegrador»)] e da adjetivação quaternária.

6. É evidente a anáfora (quatro vezes a palavra «mão»), a enumeração, a gradação (das qualidades) e o assíndeto.

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