Contactei alguns dos nossos consultores sobre a grafia em apreço.
Rui Gouveia mantém a sua posição, que foi exposta por duas vezes nas nossas Respostas Anteriores, defendendo a forma euro-região. Peixoto da Fonseca também recomenda euro-região, embora reconheça que nem sempre é claro o uso do hífen na actual ortografia. D’Silvas Filho também aceita a referida forma dentro do actual acordo.
O consulente Manuel Morais discorda, apresentando argumentos importantes. Parece-me que a posição exposta na pergunta se pode sintetizar deste modo: euro- não pode ser um prefixo, pelo menos, associado a região, porque tal elemento compositivo é «uma cristalização substantiva, uma forma reduzida de “Europa”», conforme afirma o consulente numa outra pergunta. É, portanto, a natureza e a categorização de euro- que têm de ser discutidas.
Por outro lado, é necessário recuar ao que Rebelo Gonçalves diz e pratica no Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1947) e no Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), para apurar se estamos perante uma área omissa na ortografia ainda vigente em Portugal, como é opinião de Rui Gouveia. Neste contexto, impõe-se também avaliar a proposta de Margarita Correia, no artigo Euro-: um novo prefixo do português?.
Comecemos pela alínea 2 do Tratado de Ortografia Portuguesa (Coimbra, Atlântida – Livraria Editora, 1947, pág. 216):
[O hífen deve usar-se] «Nos compostos em que entram, morfològicamente individualizados e formando uma aderência de sentido, um ou mais elementos de natureza adjectiva terminados em o [itálico no original] e uma forma adjectiva.»
Mais adiante, numa observação, Rebelo Gonçalves (idem, pág. 217) explica que se usa hífen mesmo com «formas reduzidas» de elementos de natureza adje(c)tiva, exemplificando com vários compostos, entre as quais inclui euro-asiático, cujo primeiro elemento é euro-, por europeio-. Numa nota, o lexicógrafo indica que euro-asiático significa «relativo à Europa e à Ásia ou aos Europeus e aos Asiáticos»; mas acrescenta: «Com elisão do o, eurasiático, “mestiço de europeu e asiática” (itálico do original a negro).
Este preceito será mais tarde confirmado no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (1966), no qual euro- é classificado como «elemento nominal de composição», que entra nas seguintes formas paró[ô]nimas: eurafricano ‘vs.’ euro-africano; euramericano ‘vs.’ euro-americano; eurasiático ‘vs.’ euro-asiático. Vemos que nestes casos a utilização do hífen obedece a uma diferença semântica: enquanto a forma sem hífen é um adjectivo e um substantivo masculino que significa «mestiço de europeu e africano/americano/asiático», a que leva hífen é apenas adjectivo e tem a acepção de «relativo à Europa e à África/América/Ásia» ou «relativo aos Europeus e aos Africanos/Americanos/Asiáticos».
Note-se que esta diferença semântica não corresponde a um traço semântico de carácter geral, mas sim a um contraste de âmbito muito particular. Com efeito, o traço «mestiço» funda o critério para não se utilizar o hífen. Ora, o facto de Rebelo Gonçalves optar pela omissão diferencial do hífen pode ser desconcertante, pois, quanto a mim, introduz uma pequena nota de incoerência no que se estabelece na alínea 2 do Tratado de Ortografia. Além disso, pelo menos actualmente, não vejo porque podemos definir um indivíduo como sendo eurasiático, quando, ao falarmos do seu património genético, este é euro-asiático, isto é, europeu e asiático. É possível encontrar aqui um critério baseado em traços semânticos (eurasiático é [+humano], enquanto euro-asiático é [-humano]), mas, sendo assim, já não estamos no domínio morfossintáctico, em que a alínea 2 aparenta apoiar-se.
Contudo, o consulente Manuel Morais argumenta com a formação de Euráfrica e Eurásia, que se encontram registadas sem hífen no Vocabulário da Língua Portuguesa. Aqui é que não me parece de todo claro que o elemento compositivo euro- intervenha, porque é possível justificar tais unidades gráficas através de um processo de amalgamação. Margarita Correia e Lúcia San Payo de Lemos (Inovação Lexical em Português, Lisboa, Colibri, 2005, pág. 44) definem as amálgamas como «unidades lexicais constituídas com partes de outras palavras, que se juntam, formando uma palavra gráfica». Por outras palavras, concordo que eur- é uma forma substantiva reduzida, mas, como explicarei abaixo, não vejo que seja a mesma coisa que o euro- de euro-região.
O que temos em Euráfrica e Eurásia é parte do nome Europa seguido dos nomes África e Ásia. No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, não se encontra averbado o termo Euráfrica, mas regista-se Eurásia, com o sentido de «bloco continental formado pela Europa e pela Ásia», mostrando assim que o elemento “eur-” não tem natureza adjectival; pelo contrário, ele representa uma forma reduzida de Europa, associada a Ásia, sugerindo até, de forma icónica, a falta de fronteiras definidas entre os dois continentes. Sendo assim, percebe-se melhor que Rebelo Gonçalves distinga eurasiático de euro-asiático, apesar de não referir que o primeiro é susceptível de ser interpretado como um derivado que significa «relativo à Eurásia». O Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa acaba por resolver esta duplicação de critérios em relação aos adjectivos compostos, averbando numa única entrada as formas eurasiático, euroasiático e euro-asiático, com duas acepções, «que é da Eurásia» e «que reúne, simultaneamente, características europeias e asiáticas». E o que gostaria de mostrar com estes exemplos é que, mesmo com compostos adjectivais, a aplicação do hífen oferece dúvidas.
Mas há algum exemplo em que, para usar a terminologia de Rebelo Gonçalves, o «elemento compositivo de natureza adjectival» euro- se associe a uma forma nominal? Na 2.ª observação à alínea 2 do Tratado da Ortografia Portuguesa (pág. 218) estabelece-se o seguinte:
«OBS. 2.ª – Os compostos do tipo referido na alínea 2 e na obs. anterior [trata-se da OBS. 1.ª, já aqui comentada] transmitem sempre o hífen aos seus derivados [itálico do original a negro]: afro-negrismo, de afro-negro; anglo-americanismo, de anglo-americano; demo-liberalismo, de demo-liberal; físico-quìmicamente, de físico-químico; herói-còmicamente, de herói-cómico; luso-brasileirismo, de luso-brasileiro.»
Desta observação infere-se: a) são possíveis formas nominais compostas em que entrem elementos compositivos de natureza adje(c)tival; b) no entanto, tais formas restringem-se a derivados.
Então, assumindo que euro- não é uma «forma substantiva reduzida»; que euro-região não é uma amálgama como Eurásia, nem um derivado como afro-negrismo; mas que euro- é um elemento de natureza adjectiva – como estabelecer o uso ortográfico deste elemento compositivo? Não vejo como podia Rebelo Gonçalves dar-nos essa resposta, quando, na sua época, a Europa não tinha em português a presença que tem hoje e, como tal, não exigia a utilização da forma euro-. De modo mais explícito: o uso de hífen com euro- é realmente uma «área omissa», como diz Rui Gouveia, porque nem as condições históricas impunham o uso de euro-, nem, como veremos, a descrição de algumas categorias
linguísticas estava clara.
Sendo assim, por que não criar uma regra ou um critério, completando o que Rebelo Gonçalves estabeleceu há já tanto tempo? Acho que o que Margarita Correia defende para euro-, atribuindo-lhe o estatuto de prefixo, vai nesse sentido:
«Por tudo isto, e embora euro- tenha o valor morfossintáctico de um adjectivo, supomos não ser despropositado propor para euro- o estatuto de prefixo do português contemporâneo e, como tal, sugerir que, do ponto de vista ortográfico, ele passe a ser utilizado segundo as mesmas normas actualmente utilizadas para os prefixos terminados em vogal e não acentuados do português, isto é, que passe a ser grafado sem hífen, excepto antes de bases começadas por h, o, r e s.»
É acerca desta categorização como prefixo que talvez valha a pena falar um pouco mais. No contexto do Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, podia-se ainda argumentar contra a natureza prefixal de euro- com a alínea 2 do ponto 28 do mesmo (pág. 250; itálico original a negro):
«2) É inadmissível o uso de hífen nos compostos em que um elemento de origem substantiva, proveniente do grego ou do latim e terminado em o, se combina com um mais elementos substantivos ou adjectivos.»
Não é este, porém, o caso de euro-, porque, como já vimos na OBS. 1.ª da alínea 2 do Tratado..., se trata de uma forma reduzida de europeio-. Se, em vez de nos apoiarmos no conteúdo desta última citação, assumirmos que euro- é um prefixo, encontramos certamente casos semelhantes no próprio Tratado, designadamente na alínea b), com os elementos de origem grega auto-, neo-, proto- e pseudo-. É curisoso que desta lista conste auto-, que, segundo Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, pág. 114) é também um prefixóide ou pseudoprefixo. Margarita Correia comenta esta categoria no artigo já referido, pelo que me dispenso de indicar todas as suas características.
Nesta discussão, torna-se relevante sublinhar a definição de André Martinet sobre o processo de recomposição que está na origem dos prefixóides: «uma situação linguística particular que não se identifica nem com a composição propriamente dita, nem tampouco, de um modo geral, com a derivação, que supõe a combinação de elementos de estatuto diferente» (citado por Cunha e Cintra, op. cit. pág. 114). Ilustrativo deste processo é o uso do elemento auto-, que é um prefixo, quando, de acordo com a sua etimologia (grego ‘autós’, «o próprio»), tem valor reflexo, como em «auto-retrato» (Tratado..., pág. 220); mas é um prefixóide (auto-, como «veículo motorizado»), quando entra na formação de auto-estrada, porque ganha um valor semântico específico, dependente da análise semântica da palavra automóvel. É esta realidade linguística, a dos prefixóides, que Rebelo Gonçalves não descreve, nem refere, nem me parece pressupor, quando estabelece a aplicação do hífen com auto-. Se o tivesse feito, ter-lhe-ia sido possível evitar, por exemplo, a criação de um critério particular para distinguir euro-asiático de eurasiático, garantido a coerência dos princípios expostos no Tratado…
O que se passa com euro- é algo de semelhante: não constitui só uma redução do adjectivo europeu; adquiriu igualmente o significado de «relativo à União Europeia». Daí a formação de eurodeputados (Margarita Correia, op. cit). E em euro-região o que se observa é um processo semelhante: por um lado, pode ser uma região europeia, por outro, uma região na União Europeia.
Em suma:
a) o elemento euro- tem natureza adjectival;
b) ortograficamente, pode-se aceitar que tem o mesmo comportamento que auto-;
c) do ponto de vista da formação de palavras, é um prefixóide.
Note-se que, assumindo estas conclusões, a forma europtimismo, registada no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, não está bem formada e deveria ser substituída por euro-optimismo.
Inclino-me, pois, para o uso de euro-região. Considero, além disso, que o Tratado de Ortografia Portuguesa e o Vocabulário da Língua Portuguesa são omissos sobre o uso do hífen com euro-, porque na época de Rebelo Gonçalves este elemento compositivo ainda não se desenvolvera como hoje o usamos.
N. E. (9/05/2019) – No quadro do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, e conforme a Base Base XV – Hífen em Compostos, Locuções e Encadeamentos Vocabulares, deverá escrever-se eurorregião, quer se considere que euro constitui um radical, quer se aceite que é um prefixo. Continuarão a grafar-se com hífen os adjetivos compostos euro-asiático, euro-africano, euro-americano, etc., em que euro corresponde à redução de europeu. Convém assinalar que não se deve confundir euro-asiático e euro-africano com, respetivamente, eurasiático e eurafricano, adjetivos derivados das formas amalgamadas Eurásia e Euráfrica (cf. ponto 2 da Base XVI – hífen nas formações por prefixação, recomposição e sufixação).