DÚVIDAS

Ainda Madagáscar vs. Madagascar

Recentemente, escrevi ao Ciberdúvidas acerca da resposta de 11.05.2021 à pergunta sobre a grafia e a pronúncia de Madagascar, em cuja versão original se lia que a ABL recomendava Madagáscar, forma prescrita em Portugal «desde há mais de um século». Informei que a edição atual do VOLP da ABL recomenda apenas Madagascar. O Ciberdúvidas atualizou a informação em 11.11.2025, mas reiterou que, até 1999, a ABL indicava a forma paroxítona.

É verdade, embora tal informação já estivesse desatualizada na data da resposta original, pois a ABL vinha recomendando exclusivamente Madagascar desde a 5.ª edição do VOLP, ou seja, desde 2009, pelo menos. Ademais, conjugada com a observação de que Ivo Xavier FernandesFrancisco Rebelo Gonçalves condenavam a forma oxítona, essa ressalva pode levar o leitor à suposição equivocada de que, em Portugal, a pronúncia aguda era infrequente ou, pelo menos, inculta. Não era nem uma nem outra coisa.

O próprio Gonçalves Viana, em cujo parecer de 1899 à seção de ensino da Sociedade de Geografia de Lisboa se encontra, pela primeira vez, a recomendação expressa da forma paroxítona, admitiu tacitamente que a pronúncia corrente era Madagascar, ao dizer "bem fôra que se restabelecesse a verdadeira accentuação portuguesa em outros nomes, como Madagáscar, evidente na medição do verso dos Lusíadas em que apparece o nome da maior ilha africana". Já Cândido de Figueiredo o admitiu expressamente, na obra Falar e escrever: novos estudos práticos da língua portuguesa, de 1906: «Geralmente, temos dito Madagascár, talvez levados pela regra de que são oxítonas ou agudas as palavras terminadas em ar. Mas parece estar demonstrado que a pronúncia exacta é Madagáscar.» José Barbosa Bettencourt, em Subsídios para leitura dos Lusíadas, de 1904, anotou: «Madagáscar. O verso mostra que era esta a primitiva acentuação.» Se se ouvisse Madagascar a uns poucos ou apenas aos ignorantes, e Madagáscar à maioria ou aos cultos, por que falariam Gonçalves Viana em "restabelecer" a "verdadeira" acentuação portuguesa, Cândido de Figueiredo em "parecer" estar demonstrada a "pronúncia exacta", e Barbosa Bettencourt em "primitiva" acentuação?

Há mais, porém. Na pergunta n.º 9 da p. 45 à seção de consultas da Revista de Portugal: Língua Portuguesa, Série A, Volume 3, de 1943, um leitor, quase meio século depois do parecer de Gonçalves Viana, manifestou o seu espanto com a "nova" pronúncia paroxítona: «Sempre ouvi dizer Madagascar, com o acento na última sílaba, a não ser na Itália, onde se diz Madagáscar: ultimamente, porém, voltando a Portugal, também ouvi o tal Madagáscar. Apoiam-no em Camões (Lus. X, 137), que afirma alguns dizerem Madagáscar. Mas ainda supondo que todos então dissessem assim, essa pronúncia, pelo uso e especialmente por influência do francês, não terá evolucionado para Madagascar? E note-se que foram precisamente os franceses que mais espalharam o conhecimento do nome dessa Ilha.»

A resposta remete a Gonçalves Viana: «R. Legitimamente, parece não se ter dado tal evolução fonética. O nome antigo e português da ilha foi Madagáscar, e não Madagascar, para todos aqueles que lhe não chamavam ilha de S. Lourenço. Considerando aquele o legítimo profano, até firmado na acentuação do malgaxe local, os mestres modernos da Fonética, e à frente deles Gonçalves Viana, trataram de o reivindicar, quando a influência francesa ia já conseguindo deslocar-lhe o acento, passando o topónimo de grave a oxítono. Desta vez parece que com algum êxito, porque hoje, nos nossos estabelecimentos de instrução secundária, já não há professor de Geografia que não ensine Madagáscar, em vez de Madagascar, e ao contrário Gibraltar, em vez de Gibráltar.»

Chama menos a atenção o evidente eufemismo em dizer que «ia já conseguindo deslocar-lhe o acento» (compare-se com o tom do testemunho coevo do próprio Gonçalves Viana) que o estranhamento da "nova" pronúncia por um português claramente culto. Nem mesmo o argumento da acentuação local se sustenta, pois, embora seja paroxítono, o nome do país, em malgaxe, é Madagasikara.

Parece-me, por todo o exposto, mais exato dizer que a pronúncia grave atual, no português europeu, resultou de uma interferência culta tardia, e que a pronúncia aguda atual, no português brasileiro, dá continuidade àquela que era corrente antes dessa interferência.

Resposta

Agradece-se ao consulente a partilha das considerações e esclarecimentos sobre a acentuação fonética e gráfica de Madagáscar/Madagascar, que aqui ficam registados. Seguem-se comentários meus:

1. «O Ciberdúvidas atualizou a informação em 11.11.2025, mas reiterou que, até 1999, a ABL indicava a forma paroxítona. É verdade, embora tal informação já estivesse desatualizada na data da resposta original, pois a ABL vinha recomendando exclusivamente Madagascar desde a 5.ª edição do VOLP, ou seja, desde 2009, pelo menos.»

Não posso confirmar que a ABL recomende Madagascar desde 2009, porque consultando a 5.ª edição do VOLP, que saiu nesse mesmo ano, o que se regista, como substantivos comuns, são duas formas: madagascar, sem acento, e madagáscar, com acento agudo. Se nesses primeiros anos da aplicação do Acordo Ortográfico de 1990, houve, da parte da ABL, alguma outra publicação de natureza onomástica, é claro que agradeço a referência. Mas convém também observar que, do ponto de vista da história do par Madagáscar~Madagascar, é relevante contar com o registo que exibe o Vocabulário Onomástico da Língua Portuguesa que a ABL publicou em 1999, até porque vai ao encontro do registo que Napoleão Mendes de Almeida fez no seu Dicionário de Questões Vernáculas e do que se lê no Guia de Uso do Português, de Maria Helena de Moura Neves.

Independentemente de saber se uma forma é mais correta do ponto de vista filológico, é possível apurar que, mesmo no Brasil, se recomendou em tempos não tão distantes a forma Madagáscar – justificada ou injustificadamente . Esta é uma situação interessante do ponto de vista da elaboração da norma culta, por evidenciar a evolução de um registo normativo, que atualmente a ABL revelae no Vocabulário de Topónimos e Gentílicos e no VOLP, que agora integra topónimos (cf. edição digital 2024-2025: ).

2. «... conjugada com a observação de que Ivo Xavier Fernandes e Francisco Rebelo Gonçalves condenavam a forma oxítona, essa ressalva pode levar o leitor à suposição equivocada de que, em Portugal, a pronúncia aguda era infrequente ou, pelo menos, inculta. Não era nem uma nem outra coisa.»

Julgo que é exatamente o contrário: a unanimidade dos autores prescritivistas portugueses deixa entender que estavam convencidos de que a forma para eles "errada" estava a prestes a suplantar a "correta". Importa sublinhar que, na resposta em causa não se negou nem se nega que tenha havido variação no uso das formas, havendo bons indícios, como as observações que o consulente nos enviou bem demonstram, que o uso, mesmo em Portugal, favorecia a prolação aguda (oxítona) de Madagascar. Mas cabe acrescentar que Madagáscar ~ Madagascar não parece constituir um nome de uso corrente, e, portanto, supor, por exemplo, que desde os primórdios do uso deste nome os falantes preferiram a acentuação aguda pode constituir um hipótese frágil, porque, afinal, a interferência "culta", ou seja, a acentuação grave pode ser tão antiga como a aguda. Ou seja, sugiro que o nome em questão terá tido sobretudo usos administrativos e livrescos, e só mais tarde, com a expansão da comunicação social, terá tido maior difusão.

3. «Nem mesmo o argumento da acentuação local se sustenta, pois, embora seja paroxítono, o nome do país, em malgaxe, é Madagasikara

Sobre o valor que tem a forma Madagasikara para apoiar a prioridade de Madagascar sobre Madagáscar, gostaria de referir que não tenho indicação de uma relação direta entre Madagáscar ~ Madagascar e a forma malgaxe. A informação de que disponho é a de que, para a fixação de Madagáscar ~ Madagascar no português contribuiu a pressão do francês, língua em que o nome só poderia constituir palavra oxítona, o que explicaria Madagascar. Fica é por explicar Madagáscar, tal como se infere da sua ocorrência no sempre citado verso camoniano quando se trata do preceito sobre o uso do nome: «De São Lourenço vê a Ilha afamada,/ Que Madagáscar é dalguns chamada» (Os Lusíadas, canto X, est. 137).

Resta-me considerar que a resposta que motivou a comunicação do consulente em pouco contraria a proposta aqui em referência, uma vez que a preocupação foi sempre descrever os usos dados às duas formas.

Quanto à tese do consulente, que contesta a primazia de Madagáscar sobre Madagascar, creio que a sua discussão encontrará lugar e interlocutores adequados numa publicação dedicada a estudos filológicos e da história da língua.

N. E. –Ainda do mesmo consulente, reproduz-se a réplica recebida em 14/11/2025. Dado que o consultor declara que nada tem a acrescentar, observe-se apenas que a referência a Balbuena, ou seja, Bernardo de Balbuena (1562-1627), que é feita mais adiante na exposição, é relativa ao poema em castelhano El Bernardo, em que ocorre o nome Madagascar.

«1. A 5.ª edição do VOLP (2009) é ainda hoje consultável, no estado em que se encontrava em linha a 19.06.2015, por meio desta hiperligação a Way Back Machine do projeto Internet Archive. Reproduzo, abaixo, os resultados da pesquisa ao topónimo Madagascar e à sua variante Madagáscar[1]:

(a) Madagascar:



(b) Madagáscar:





Portanto, desde julho de 2015, pelo menos, não se registravam apenas os substantivos comuns, com e sem o acento, mas também o topônimo Madagascar, exclusivamente sem o acento, independentemente de o termo pesquisado ser acentuado ou não.

Quanto à história do par Madagáscar-Madagascar, diferentemente de Napoleão Mendes de Almeida e Maria Helena de Moura Neves, o manual de redação oficial e diplomática do Itamaraty prescreve Madagascar, como se pode verificar pelo verbete Topônimos e gentílicos, consultável na versão em linha do manual, disponível nesta hiperligação ao sítio da Fundação Alexandre de Gusmão, vinculada ao Itamaraty. O próprio Hoauiss, como bem lembrou o consultor, diz ser preferível Madagascar, "por analogia com numerosos oxítonos em -ar da língua portuguesa, dentre os quais outros nomes de origem malaia". Adriano da Gama Kury, em Português básico e essencial (Rio de Janeiro: Lexikon, 2013, p. 35), é peremptório:





Celso Ferreira da Cunha já recomendava, em 1964, no seu Manual de português: primeira e segunda séries ginasiais, p. 94, a forma oxítona: 


Julgo, porém, pouco proveitoso perfilar numerosos exemplos em contrário, pois basta referir que tanto os manuais oficiais quanto os de redação dos principais jornais do país recomendam Madagascar, ainda que um ou outro registrem, eventualmente, a variante Madagáscar, que nunca teve, no Brasil, o favor que, por interferência culta, veio a ganhar em Portugal, e, mesmo aí, bem depois do parecer de 1899 de Gonçalves Viana, se nos pudermos fiar no testemunho do português que manifestou o seu estranhamento da nova pronúncia em carta à Revista de Portugal: Língua Portuguesa, já no ano de 1943.

Apoiar-se num ou noutro compêndio para recomendar, como pronúncia e grafia cultas no Brasil, a forma paroxítona, é, com o perdão da franqueza, induzir o leitor em erro, facilmente evitável, se se considerarem, além da prescrição atual da própria ABL, os manuais de redação oficial e de redação jornalística, além da pronúncia natural de virtualmente todos os brasileiros, cultos ou não, a qual se conforma, ademais, à pronúncia intuitiva da quase totalidade das palavras que, em português, terminam em -ar, como lembrou não apenas o Houaiss, mas o próprio Cândido de Figueiredo, a despeito de aceitar o parecer de Gonçalves Viana.

2. É um eufemismo dizer que «a unanimidade dos autores prescritivistas portugueses deixa entender que estavam convencidos de que a forma para eles 'errada' estava a prestes a suplantar a 'correta'». Gonçalves Viana, autor da primeira recomendação moderna da pronúncia grave, falava em restabelecimento da verdadeira acentuação portuguesa: somente se restabelece o que já se perdeu. Os demais apenas o seguiram, apoiados todos na autoridade de Camões. Um dos primeiros seguidores, Cândido de Figueiredo, já acentuava as paroxítonas nas primeiras edições do seu dicionário, que, todavia, trouxe Madagascar, sem acento, até pouco depois de uma edição de 1901 da revista da Sociedade Geografia de Lisboa publicar o parecer que ela própria encomendara a Gonçalves Viana. Ainda assim, Cândido de Figueiredo foi cauteloso: «parece estar demonstrado que a pronúncia exacta é Madagascar.» Disse-o imediatamente depois de admitir que «geralmente, temos dito Madagascár, talvez levados pela regra de que são oxítonas ou agudas as palavras terminadas em ar». A mesma razão, aliás, por que o Houaiss considera preferível a pronúncia oxítona: contam-se nos dedos as exceções a esta regra.

Eu não disse que, "desde os primórdios do uso deste nome, os falantes preferiram a acentuação aguda". Além do exemplo contrário de Camões, há o de Balbuena, que o consultor Carlos Rocha apresentou. Eu disse, sim, que, a julgar pelas palavras dos próprios defensores do «restabelecimento da verdadeira pronúncia», a memória desta já não se conservava quando Gonçalves Viana se debruçou sobre esta questão, em parecer encomendado pela Sociedade de Geografia de Lisboa. Cumpre não perder de vista a especificidade desta encomenda, que terá levado Gonçalves Viana a buscar pronúncias lidimamente portuguesas, ainda que já não fossem correntes. Esta motivação, aliás, está expressa no seu parecer:

"A maior parte da antiga nomenclatura que usaram os nossos escriptores desde o século XV, e mesmo antes, até o princípio do século actual, vae caindo em desuso ou sendo menosprezada, não se tendo na devida conta, ao escrever compendios, que êsse vocabulário e as fórmas genuinamente portuguesas de nomes próprios de mares, de rios, de terras, de povoações, de quaesquer localidades emfim, fazem parte essencial do léxico nacional, tão essencial, como as demais dicções da língua patria. A maioria, se não todos os compendios empregados no ensino geográphico, veem inçados de denominações estrangeiras ou estrangeiradas, mal formadas umas, falsas outras, illegíveis muitas dellas, e não poucas inúteis por já existirem na língua outras, ou melhór autorizadas por bons escriptores nossos, ou mais conformes com a índole e particularidades de pronúncia do idioma que falamos e sua orthographia tradicional, cujas feições týpicas são característico nacional de tamanha valia como outro qualquer dos que nos differençam dos outros povos."

É, aliás, curioso que, conquanto dissesse, no mesmo parecer, que convinha fixar normas para as denominações geográficas, a fim de evitar «a sua escripta inútil e desarrazoadamente estrangeirada, ou infundadamente etymologica», Gonçalves Viana buscasse em Camões apoio para uma acentuação que, de portuguesa, só tem mesmo o encontrar-se n'Os Lusíadas, porque portuguesa mesmo é a tendência a pronunciar como oxítonas as palavras terminadas em -ar. É este, aliás, um contra-argumento sólido, para dizer o mínimo, contra a fácil imputação de galicismo, que se estende, ademais, ao espanhol, outra em língua em que são oxítonas as palavras terminadas em -ar.

3. Finalmente, se a preocupação é descrever o uso dado às duas formas, fez falta dizer, com clareza, que a pronúncia grave nunca encontrou acolhida, no Brasil, senão em poucos compêndios, e que a pronúncia aguda é, hoje, virtualmente unânime, independentemente do nível de formalidade do registro. Concordo, porém, em que esta "discussão encontrará lugar e interlocutores adequados numa publicação dedicada a estudos filológicos e da história da língua", e agradeço ao consultor a presteza e o cuidado de sempre na elaboração da sua resposta.»

[1 NE – Por limitações técnicas relativas às suas dimensões, as imagens têm hiperligação à página de pesquisa do VOLP conforme se pode recuperar da Way Back Machine.]

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