DÚVIDAS

Ainda «A profissão é professor»

Quanto à discussão das frases «A profissão dele é professor.» e «A profissão dele é a de professor.», verificamos que as nossas prezadas Ciberdúvidas, a quem temos motivos para estar muito agradecidos pelos excelentes serviços que prestam, referem como evidentemente melhor e mais exacta a expressão «a profissão dele é a de professor.»

Ora esta declaração da evidência da qualidade superior e da exactidão da segunda frase levanta-me... novas dúvidas. Será que é assim tão evidente? A minha posição actual é a de que as frases merecem semelhante valorização, por pertencerem ao mesmo nível, padrão, de linguagem e serem funcionalmente equivalentes, o que não significa que não incorporem algumas diferenças, como abaixo expresso. Estilisticamente, não creio que a frase sem o pronome a seja inferior, como abaixo também expresso.
Para começar, estabelecendo cadeias em que as expressões revelem bem os seus sentidos, consideremos a sequência de frases:

Médico é uma profissão. Canalizador é uma profissão.

Professor é uma profissão e é a profissão dele. A profissão dele é professor.

E consideremos estoutra sequência de frases:

Existe a profissão dele. É a de professor. A profissão dele é a de professor.

Será que uma destas formulações é evidentemente melhor do que a outra? De acordo com o parecer dado pelas Ciberdúvidas, as questões em causa são mais de ordem semântica do que sintáctica. No entanto, os significados das duas frases são imediatamente reconhecidos como idênticos e claros por qualquer lusófono, que, à partida, nunca iria pensar em significados que envolvam a ideia de que a «profissão» é «um professor». A esta estranha ideia contraponho outras matizes semânticas relativas à aplicação do verbo ser, bem como a consideração do seu efeito em cada um dos casos, como explico abaixo. Note-se, de passagem, que na frase «Médico é uma profissão.» ninguém pensará que «o médico» é «uma profissão». Que risco haverá, então, de «a profissão» ser «um professor»? Claro que ninguém pensa assim ao formular ou ao receber uma destas frases.

Na frase «A profissão dele é a de professor.», a utilização do pronome a invoca a palavra profissão, pelo que a frase equivale a «A profissão dele é a profissão de professor.» Aqui, o verbo ser é utilizado para estabelecer uma relação directa, de tipo comparativo, de identidade entre duas coisas da mesma natureza, duas profissões: a profissão dele e a profissão de professor. Por via do verbo ser, diz-se que a profissão dele e a profissão de professor são iguais, ou melhor, a mesma.

Já na frase «A profissão dele é professor.», o verbo ser estabelece um relação que não é de identidade directa, mas sim de atribuição selectiva entre duas coisas de natureza distinta, um homem e uma profissão: do universo das profissões, a que pertencem médico, canalizador, professor e outras, a que é dele é professor.

Em termos de exactidão, as duas formulações são equivalentes, pois nos dois casos não há qualquer incerteza ou especificação potencialmente errónea: ele é professor, ou seja, a profissão dele é professor, ou seja ainda, a profissão dele é a (profissão) de professor.

Passando a um plano estilístico, se bem que a expressão com pronome a possa, segundo algumas opiniões, parecer mais "refinada", ela é mais retorcida, uma vez que o pronome a introduz redundância relativamente ao termo que é o sujeito da frase e que dista de apenas duas palavras: «A profissão dele é a (profissão) de professor.» Não me parece que esta formulação seja superior a «A profissão dele é professor.» Não admira que a forma «A profissão dele é professor» seja mais corrente, se evita a referida redundância. E a menor frequência de uma expressão não a torna, por isso, superior. Não sem ironia, digo: a este mesmo nível, estilístico, não seria até de abandonar as duas expressões e adoptar, se quisermos criar certos efeitos, «Ele exerce o mester de docente.»?

Tudo isto, claro, «salvo melhor opinião»!

Fico a aguardar com interesse a resposta de V. Exas., que muito agradeço.

Resposta

Obrigado pelas suas observações, que são muito pertinentes e que me levaram a reformular a resposta em causa.

Parece que estamos de acordo quanto à correcção sintáctica de «A profissão dele é professor» e «A profissão dele é a de professor». Quanto à aceitabilidade semântica de «A profissão dele é professor», depois de ler o que escreveu, estou, como já disse, tentado a matizar a minha posição. Contudo, não adopto totalmente o seu ponto de vista, porque acho que a «natureza retorcida» da construção com o demonstrativo reflecte uma intuição de carácter linguístico; por outras palavras, não é da mesma ordem que a árdua elaboração de «Exercer o mester de professor». Assim:

1. Antes de comparar «A profissão dele é a de professor» e «A profissão dele é professor», é preciso ter em conta que uma coisa é dizer «O Francisco é professor», e outra, «A profissão é professor». A primeira frase tem valor atributivo, dando-se ao substantivo professor uma funcionalidade próxima (mas não idêntica, é verdade) à de um adjectivo, o que permitiria dizer que «O Francisco é professor» é próxima de «O Francisco é alto». A segunda frase tem carácter identificacional, porque estabelece a identidade entre «a profissão» e «professor».

2. Ao mesmo tempo, é hierárquica a relação entre profissão e professor, uma vez que esta palavra é um hipónimo (ou seja, é mais específica) daquela (é o hiperónimo). Sendo assim, pode-se dizer que na frase «Professor é uma profissão» ocorre uma expressão singular indefinida com uma leitura não específica ou intensional (ver Inês Duarte e Fátima Oliveira, "Referência Nominal", in Gramática da Língua Portuguesa, de M. H. M. Mateus et al., Lisboa, Editorial Caminho, 2003, págs. 224-246).1 Contudo, a troca de posição dos termos da frase, ou seja, «Uma profissão é professor», encontra problemas se não for devidamente contextualizada («Uma profissão, entre muitas outras, é professor»).

3. Por outro lado, a palavra profissão tem um complemento (seleciona um argumento) que tem de ser preenchido, quando surge pela primeira vez em contexto linguístico:

a) *«A profissão é indispensável à sociedade.»

b) «A profissão de professor é indispensável à sociedade.»

Do ponto de vista da sua semântica, a palavra profissão, como outras tantas que designam conceitos gerais, necessita de um complemento que defina as suas propriedades, isto é, que permita uma leitura intensional (idem).

4. Considero que a opção estilística pela construção de demonstrativo («a de professor») decorre da procura de vários efeitos:

a) numa frase copulativa ou identificacional, o falante depara-se com uma palavra, professor, que é substantivo mas que se comporta muitas vezes como se fosse um adjecivo, dada a ausência de artigo em casos como «O Francisco é professor»;

b) paralelamente, o falante usa profissão, que selecciona um complemento que é seu hipônimo, por exemplo, professor;

c) frases como «A profissão é professor» ou até «A profissão dele é professor» são também juízos metalinguísticos, justamente porque indicam o termo professor como uma especificação do termo profissão, como se esta palavra tivesse valor de menção (uma coisa é dizer «A casa é pequena», e outra, «A palavra casa é pequena»; na segunda frase, casa tem valor de menção);

d) no entanto, «A profissão (dele) é professor» pode ser confundida com as características atributivas de «O Francisco é professor», o que choca com a intuição de que as frases não têm o mesmo estatuto lógico-semântico;

e) sendo assim, há que suprir a informação que falta a professor numa frase identificacional: «A profissão (dele) é a profissão de professor»;

f) finalmente, para evitar a redundância, recorre-se a uma anáfora pronominal: «A profissão (dele) é a de professor.»

O que apresento é uma mera hipótese, ciente de que há muitas estruturas ambíguas que nem por isso deixam de ser gramaticais. Isto para dizer que admito a aceitabilidade da frase «A profissão é professor».

1Intensional significa «relativo a intensão». Por intensão de um termo  entende-se «[...] o conjunto de propriedades essenciais que determinam a sua aplicabilidade. Por exemplo, "algo que é canino é um cão". Por oposição, a extensão de um termo é a classe dos objectos aos quais ele é correctamente aplicado. [...]» (Dicionário de Termos Linguísticos, vol. II, Lisboa, Edições Cosmos, 1992, disponível em http://www.ait.pt/recursos/dic_term_ling/index2.htm).  Ver também no Ciberdúvidas resposta de Ana Martins, «O conceito de intensão».

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