Peço desculpa por não ter interpretado adequadamente a sua dúvida, ao mesmo tempo que agradeço a possibilidade de esclarecer melhor a estrutura, hierarquizada, da frase em apreço que repito:
«Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?»
Trata-se de uma frase complexa, constituída por uma oração subordinante e por uma subordinada participial: «se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?»
O sujeito do particípio não está explicitamente registado, constituindo uma categoria vazia, ou vestígio. Porque o particípio realizada está no número singular e no género feminino, pode ter, em última análise, como referente do seu sujeito qualquer dos nomes que preencham estes requisitos de concordância e que o antecedem. São eles: despenalização, interrupção e gravidez. Do ponto de vista sintáctico, estes três nomes estão hierarquizados entre si. O nome despenalização é seguido de um complemento determinativo «da interrupção voluntária da gravidez», que, por sua vez contém um nome, interrupção, modificado por um adjectivo e por outro complemento determinativo: «da gravidez». A sintaxe da nossa língua permite, em situações deste tipo, que a informação subsequente possa ser associada ao nome mais alto, ou seja, ao que inicia toda a estrutura e que, neste caso, é despenalização, ou a outro nome encaixado nesta estrutura. É o que acontece, por exemplo, em frases como a que cito e que retirei da página 496 da Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Cunha e Cintra: «A maioria destes quartos não tinham tecto, nem portas, nem pavimento» e que poderá ter como alternativa «A maioria destes quartos não tinha tecto, nem portas, nem pavimento.»
Vistas as coisas desta forma, a frase em apreço é ambígua, uma vez que o particípio realizada pode ter como sujeito qualquer um dos nomes anteriores. E essa ambiguidade só se desfaria explicitando o sujeito, através da repetição do nome que desempenha essa função. Poderíamos ter algo como: «Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se essa interrupção for realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?»
Voltando aos três possíveis referentes do sujeito de realizada, vejamos se há factores não sintácticos que contribuam para uma boa interpretação, encarando-se como boa a leitura que conduza a um só sentido. Será o referente do sujeito o nome gravidez? Creio que não. Há algumas incompatibilidades sintáctico-semânticas entre o nome gravidez e o verbo realizar, sobretudo se a seguir vier uma expressão como «nas primeiras 10 semanas». Será despenalização? A despenalização de algo pode ocorrer nas dez semanas subsequentes ao início do processo… Mas, como refere, não pode acontecer «em estabelecimento de saúde legalmente autorizado». Há, pois, restrições de ordem pragmática que limitam a aceitação de despenalização como referente do sujeito. Esta limitação não é sintáctica. É contextual e é activada pelo conhecimento que temos do mundo que nos rodeia. Que ela funciona, prova-o a resposta anterior que dei, pois nem me apercebi de qual era, efectivamente, a sua dúvida.
Em conclusão, parece-me que, se nos cingirmos a critérios unicamente sintácticos, estamos perante uma frase ambígua. Mas, se valorizarmos todos os elementos que contribuem para uma boa interpretação das mensagens que descodificamos, então essa ambiguidade é muito reduzida.
Perguntar-me-á se não seria de ter evitado a hipótese, ainda que mínima, de ambiguidade. Objectivamente, devo responder que o desejável é que, numa linguagem denotativa, em que se exige uma só leitura, não haja sombra de ambiguidade. Objectivamente, e honestamente, devo também acrescentar que me não sinto capaz de atirar a primeira pedra, sobretudo depois de ter precisado de uma segunda intervenção para perceber que, afinal, poderia haver ambiguidade.