Antes de mais, importa analisar ao pormenor o que caracteriza a lítotes ou litotes.
Em primeiro lugar, surge como a única figura de pensamento com efeitos de comparação por atenuação» (João David Pinto Correia, "A expressividade na fala e na escrita", in Falar melhor, Escrever melhor, Lisboa, Selecções do Reader´s Digest, 1991, pp. 497-501), o que nos indica duas realidades que lhe são específicas: a comparação e a atenuação [aproximando-a do eufemismo, segundo o E-Dicionário de Termos Literários, de Carlos Reis (org.)], destacando-se o seu processo de atenuar o pensamento.
Ora, nos versos de Guerra Junqueiro que o consulente nos apresenta, observam-se estas duas facetas da litotes: a comparação directa do povo a Jesus («E rei como Jesus») e a atenuação da simbologia de Jesus (representando a imagem da vítima de sofrimento atroz — «para beber o fel, para morrer na cruz») através da ascensão ao estatuto de rei («o povo é rei»).
Não há dúvida, também, de que nesses versos está implícita «uma ironia de dissimulação com valor perifrástico», características próprias da litotes. A ironia sobressai da realidade de disforia (fel e morte na cruz) de Jesus que em nada se identifica com a imagem de poder, de abundância e de prazer associada à figura do rei. Mas essa ironia está, de facto, dissimulada de forma perifrástica, porque a palavra rei é repetida (marcando o seu valor como uma verdade inquestionável).
O único aspecto que não é aqui observado é o da presença da negação, pelo menos, de forma directa. Repare-se que, nas definições da litotes se diz, também, que «consiste em obter grau superlativo pela negação do contrário» (Pinto Correia, ob. cit.), assim como «se trata de uma figura de retórica que consiste em afirmar algo indirectamente através da negação ou diminuição do seu oposto ou contrário» (E-Dicionário de Termos Literários).
Será esta uma condição essencial? Os exemplos fornecidos pelas obras consultadas registam a negação — «não pequenos» significa «muito grande»; «Não bebemos pouco, não, senhor!» para indicar o contrário; «não poucas vezes…» para designar «muitas vezes»; Fernão Lopes, no Prólogo à Crónica de El-Rei D. João I, e a propósito da pesquisa feita para reunir todos os dados necessários à sua crónica, diz que tal foi feito «não sem gran trabalho a nós de ordenar».
Resta-nos a certeza de que o texto literário não é linear, demarcando-se pela conotação, pela polissemia e pela licença poética. As figuras de estilo, de retórica ou de pensamento, assim como os recursos estilísticos, têm como objecto o texto literário, o que nos pode levar a inferir que possam usufruir dos privilégios da literatura.