Em latim, o verbo irregular eo, is, ire, i(v)i, itum («ir») apresenta um único particípio presente: iens, euntis. Deste verbo derivam muitos outros, entre os quais o referido pelo nosso consulente: transeo, ‑is, ‑ire, ‑i(v)i, ‑itum («atravessar, transpor»). Tal como o verbo primitivo, também este verbo derivado apresenta um único particípio presente (transiens, transeuntis), e é precisamente da forma oblíqua transeunte(m) deste particípio que deriva o nosso conhecido vocábulo transeunte.
Não encontro abonada, em nenhum dicionário, uma hipotética segunda forma deste particípio (transiens, *transientis) que possa justificar etimologicamente o vocábulo transiente. Mesmo o colossal Lexicon totius latitinatis, cujo quinto volume compulsei, só contém a forma clássica transiens, transeuntis. Creio, por isso mesmo, que enferma de erro o dicionário Houaiss Eletrónico, e outros que lhe seguem as pisadas, quando apresenta do seguinte modo a etimologia de transiente:
«lat. transiens, entis part. pres. do v. lat. transīre ´passar de um lugar a outro; passar, decorrer (o tempo)´;»
Se é certo que transiente não deriva do latim clássico, poderá a sua origem remontar ao chamado latim vulgar? Não me parece nada sustentável tal hipótese, não só por se tratar de vocábulo erudito, como também devido ao facto de o mesmo ter entrado tardiamente no nosso idioma. Na verdade, o já referido dicionário Houaiss data-o de 1836, por o encontrar abonado no Novo Diccionario Critico e Etymologico da Lingua Portugueza, que, precisamente nesse ano, veio a lume em Paris, da autoria do médico e polígrafo Francisco Solano Constâncio, filho de Manuel Constâncio Alves, cirurgião do reino, e irmão de Maria Margarida Rita, a qual terá sido, dizem os estudiosos, a Marília que Bocage imortalizou nalguns poemas, como a Epístola a Marília e, mais conhecido ainda, Olha, Marília, as flautas dos pastores.
Voltando ao nosso vocábulo, acrescente-se que, na obra referida pelo consulente, Almeida Garrett o usa ainda mais duas vezes, ambas no capítulo XX: «raio de sol transiente e inesperado» e «raio de luz transiente e mágico». Sabemos que a primeira edição em livro desta obra foi dada à estampa em 1846, em dois volumes, mas os capítulos em questão (ou seja, o XX e o XXI, onde o autor se serve do vocábulo) já tinham vindo a lume no ano anterior, na Revista Universal Lisbonense, a qual, aliás, iniciou a publicação da obra no dia 17 de agosto de 1843. Profundo conhecedor do tema, refere José Pereira Tavares que «É importante notar-se que, pelo menos até o capítulo XXXVI, foi a obra escrita em 1843»1. O dicionário já referido, no qual transiente fez a sua estreia oficial, documentada, é, portanto, ligeiramente anterior a esta imortal obra de Garrett, e ficamos sem saber onde terá o lexicógrafo respigado tal vocábulo.
Se não provém do latim clássico, nem nos chegou por via do latim vulgar, donde terá, então, vindo este cultismo? Julgo que o Grande Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora (2004, p. 1519) nos dá uma excelente pista com a seguinte indicação etimológica:
«Do latim *transiente‑, por transeunte‑, "idem", particípio presente de transīre, "passar; passar para além de; transformar-se", pelo inglês transient, "idem".»
O asterisco indica, obviamente, que a forma latina é hipotética, como não podia deixar de ser, pois não vem abonada em nenhum dicionário, como vimos. A novidade consiste no argumento da origem inglesa do vocábulo, o que, no meu entender, faz todo o sentido. Na verdade, transient é muito mais antigo do que transiente: de acordo com o Oxford English Dictionary em linha, transient data de 1612, e a sua variante transeunt, de 1607. Refira-se que este dicionário apresenta copiosas citações de todos os vocábulos averbados, sempre rigorosamente documentadas, o que lhe confere inquestionável autoridade. Em relação ao vocábulo em questão, as citações elencadas no respetivo verbete evidenciam que aquele tem longa história na língua inglesa apresentando várias aceções, entre as quais a de «passageiro, transitório», que partilha com o congénere luso.
Também em linha, o Merriam-Webster Dictionary dá a transient uma datação ligeiramente anterior (1590), mas não cita qualquer fonte. Seja como for, é este o único dicionário, dos muitos que consultei, que apresenta uma explicação etimológica plausível para o vocábulo informando que deriva do «latim transeunt-, transiens, particípio presente de transire», sem recorrer a qualquer forma hipotética *transiente‑. Como a variante inglesa transeunt aparentemente é mais antiga que transient, eu atrever-me-ia a aventar que a segunda provém simplesmente da primeira, por um fenómeno de analogia gráfica com agent, efficient, patient e muitos outros vocábulos que exibem esta terminação em inglês. Refira-se ainda que, mais recentemente, transient adquiriu novas conotações nesta língua, sobretudo a nível do jargão científico, o que poderá igualmente influenciar o seu congénere luso aumentando a frequência deste, como denota a seguinte página.
Para concluir, acrescentaria que a origem inglesa de transiente casa bem com o entusiasmo que Almeida Garrett, pelos vistos, nutria por este vocábulo. Sabe-se que Garrett, que esteve exilado em Inglaterra, era muito lido em literatura inglesa e estudou com afinco a obra, entre outros, de Lord Byron e Walter Scott, autores consagrados do romantismo desse país, acabando por se tornar precursor deste movimento em Portugal. É possível que transient se lhe tenha deparado durante essas fartas leituras...
1 Almeida Garrett: Viagens na Minha Terra. Edição organizada, prefaciada e anotada pelo prof. José Pereira Tavares. 3.ª edição. Lisboa: Livraria Sá da Costa 1974. xxxiv, 333 p.; p. xxvii.