A retoma (anafórica) de uma expressão que inclua o quantificador cada por parte de um pronome átono é feita sobretudo no plural:
1. «Embora ele tenha detalhado cada ponto de Lisboa e os tenha verificado rigorosamente.»
2. ?«Embora ele tenha detalhado cada ponto de Lisboa e o tenha verificado rigorosamente.»
Não sendo impossível, a frase 2 afigura-se menos natural que 1, porque o valor de cada, embora sintaticamente singular na oração em que ocorre, é sempre associado semanticamente a todos, numa perspetiva distributiva («todos, um a um»).1
Assinale-se o que se diz no Dicionário Houaiss acerca do valor semântico de cada (desenvolveram-se todas as abreviaturas):
«[A]lguns gramáticos recomendam o uso de cada apenas com sentido distributivo, reservando o pronome todo para os casos em que não há idéia de distribuição, mas apenas de generalidade ou totalidade; assim, sigo cada vez por um caminho implica um caminho diferente a cada vez, enquanto sigo toda vez por um caminho significa seguir sempre o mesmo caminho (há também casos intermediários, em que a diferença é mais de ênfase que de significado: p. ex.: cada homem tem um preço e todo homem tem um preço); no uso corrente, contudo, cada e todo têm sentidos muito próximos, sendo mesmo us[ados] como sinônimos [.] [..] [Q]uando cada forma o sujeito (simples ou composto) de uma oração, o verbo concorda na 3.ª pessoa do singular (cada livro daqueles é uma obra-prima; cada pessoa, cada planta e cada animal será destruído; cada um de vós lutou bravamente).»2
1 No entanto, Maria Helena de Moura Neves, em Gramática de Usos do Português (São Paulo, Editora Unesp, 2000, pág. 538), regista um exemplo em a retoma anfórica é feita no singular (sublinhado meu): «Nós, os veteranos, combinávamos quem retiraria CADA livro e o passaria aos demais, sem complicações.»
2 Relativamente à concordância no singular na frase «cada pessoa, cada planta e cada animal será destruído», observe-se que ela é possível e está descrita por Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (1984, Edições João Sá da Costa, pág. 505/506), quando se trata de uma enumeração gradativa («A mesma coisa, o mesmo acto, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigo», Monteiro Lobato, Negrinha, São Paulo, Brasilenese, 1951, pág. 4, in ibidem; manteve-se a ortografia original). Atente-se também num exemplo recolhido por M.ª H. Moura Neves (op. cit.): «Cada minuto, cada ponto, na linha da minha existência pode ser um milagre ou um desastre, uma estrela ou um precipício», Discursos de Gilberto Amado.