Vida, em princípio, só há uma. A forma de a viver é que poderá variar de pessoa para pessoa. Sendo assim, somos levados a concluir desde logo que a formulação «Um dia eu vou viver uma vida» será (excluindo contextos eventualmente literários ou metafóricos), por força da semântica, considerada agramatical, pois verifico que «vida» se comporta como nome não-contável (cf. OK «a água está suja» vs. *«uma água está suja»). A expressão mais comummente usada nestes casos será «viver a vida» (com artigo definido, justamente porque vida só há uma), e não tanto «viver uma vida» (com artigo indefinido). De facto, se a formulação sugerida fosse «um dia, eu vou viver a vida», estaria totalmente de acordo com a sua validade, pois nada me choca neste tipo de estruturas, marcadas pelos chamados «argumentos sombra», de acordo com Maria Helena Mira Mateus e outros, Gramática da Língua Portuguesa, 2003, pp.184-185.1 Por outro lado, repare-se que, seguindo o mesmo raciocínio, a frase «*Eu gosto de uma vida» será igualmente agramatical, sendo que «Eu gosto de uma vida assim» já poderá, do meu ponto de vista, ser validada.
Ora, sendo que o nome vida, como já referi, apresenta propriedades semânticas que o impedem de ter plural ou de ser enquadrável em contextos individualizados de um tipo ou de uma espécie, será, creio eu, o recurso ao constituinte «assim» que permitirá essa operação de individuação (cf. Mateus e outros, op.cit., pp. 236-242). Deste modo, e tendo em conta que o verbo viver é, à partida, intransitivo (cf. Dicionário Houaiss, por exemplo), podendo eventualmente apresentar, em certos contextos, o tal complemento/argumento sombra a que já fiz referência, «assim» poderá, então, ser encarado de vários ângulos, dependendo da abordagem que adoptarmos face à ambiguidade semântica plasmada na frase em análise:
a) Um dia, vou viver uma vida assim = viver [uma vida igual à de X (à do meu irmão, por exemplo)];
b) Um dia, vou viver uma vida assim = viver [uma vida desta maneira].
Penso que, em ambas as propostas de leitura, «assim» modificará o nome vida, podendo ser classificado, portanto, do ponto de vista sintáctico, como adjunto adnominal, na linha do que o prezado consulente propõe.
Porém, em a), «assim» será um adjectivo (cf., por exemplo, Infopédia, e Evanildo Bechara, Moderna Gramática Portuguesa, 2002, p. 146), e em b), um advérbio de modo (cf. Cintra e Cunha, Nova Gramática do Português Contemporâneo, p. 539, Priberam, e Mateus e outros, op. cit., p. 422), já que que, ainda de acordo com Bechara (op. cit., p. 146), «certos advérbios são assimilados em função de modificador de substantivo, principalmente quando este é entendido não tanto enquanto substância, mas enquanto qualidade que esta substância apresenta: Gonçalves Dias é verdadeiramente poeta [...]; Pessoas assim não merecem nossa atenção». O referido gramático brasileiro conclui ainda, reforçando esta perspectiva, que «também certos advérbios funcionam como predicativo, à maneira dos adjetivos: A vida é assim. [...]».
Posto isto, resta-me concluir, dizendo que, por vezes, as fronteiras entre adjectivos e advérbios não são facilmente detectáveis, pois certos advérbios, como vimos, podem apresentar propriedades que os aproximam dos adjectivos, assim como estes também se podem usar como advérbios, ex.: «faz isso rápido».
1 De acordo com as referidas autoras, estes são argumentos que se encontram «semanticamente incorporados na palavra predicativa, [podendo] aparecer autonomizados [...] Chovia uma chuva miudinha; A vítima chorou lágrimas de raiva; Os guerreiros dançam uma dança frenética».