Num dos poemas do peta irlandês W. B. Yeats, podemos ler que «each one sees only his side, not the other».1 Ora, esta será uma excelente frase para caracterizar o espírito simetricamente oposto àquele que presidiu à fundação do Ciberdúvidas. De facto, este é, do meu ponto de vista, um espaço privilegiado de debate, de encontros e de desencontros de múltiplas perspectivas sobre as questões suscitadas pela aplicação, por assim dizer, da caleidoscópica língua portuguesa. Fazendo minhas as palavras de Edward Lopes (Fundamentos de Linguística Contemporânea, 18.ª ed., São Paulo, Cultrix, 2007, p. 70), a língua é um «código aberto e produtivo». Por isso mesmo, muito agradeço o válido contributo do estimado consulente, que nos apresenta aqui uma outra perspectiva sobre um aspecto muito concreto, suscitado a propósito de uma resposta por mim redigida, e que nos permite também confrontar, de forma saudável, vários ângulos de abordagem a uma mesma questão.
Em primeiro lugar, será importante salientar que a resposta por mim proposta terá obrigatoriamente de ser enquadrada no contexto de uma pergunta muito concreta, na qual a consulente referia, por exemplo, que «Ele [o um] tem a função de um pronome, mas não o pode ser». Ora, o que, na minha opinião, levantava algumas dúvidas à consulente seria justamente o facto de a palavra um (que, efectivamente, pode desempenhar, em determinadas situações, a função de pronome indefinido – Dicionário Houaiss, Infopédia, ex.: «O prémio saiu a um que já era riquíssimo» ) aparentar só poder ser um pronome, naquele contexto, por parecer que substituía o nome queijo, quando, na verdade, poderia haver outros ângulos de abordagem sobre a frase sugerida. Ora, aquilo que procurei fazer, logo no início da resposta, foi justamente tentar dar à consulente uma perspectiva um pouco mais abrangente, isto é, tentar mostrar que, sustentado em Mateus e outros (Gramática da Língua Portuguesa, 1989, p. 260), para além do processo de pronominalização, existem outros tipos de processos, como é o caso do elíptico, que se poderão, em alguns casos, confundir, criando uma espécie de ilusão de óptica sintáctica. Por outro lado, o grau de compatibilização da minha resposta com a reflexão de Mateus e outros pareceu assumir, do meu ponto de vista, uma ainda maior sustentabilidade, tendo em conta que estava, neste caso concreto, a trabalhar com uma estrutura coordenada: «As frases coordenadas são as estruturas menos restritivas para a elipse: todos os tipos de elipse frásica surgem neste contexto, e alguns tipos de elipse só podem mesmo aparecer em domínios de coordenação» (Mateus e outros, op. cit., 2003, p. 881).
Deste modo, quando, na minha resposta, faço a passagem para a análise concreta da classe gramatical da palavra um, não é minha intenção, como o consulente sugere, estabelecer uma relação directa, do tipo causa/efeito, entre a reflexão inicial e a categorização gramatical que posteriormente acabo por fazer. Repare-se que eu não uso, como mais uma vez o consulente sugere, a conjunção coordenativa logo, mas, sim, a expressão «sendo assim» (leia-se «dito isto», «posto isto»). No fundo, o que pretendi fazer foi, num primeiro momento, abrir cenários possíveis de resposta (apresentando eventuais alternativas de análise) para, posteriormente, de forma mais enquadrada, poder passar à categorização gramatical da palavra um, tendo em conta um possível patamar de análise. Logo, concordo inteiramente com a afirmação do prezado consulente «os pronomes estão sempre em vez duma palavra que, ausente, poderia estar presente. Mas, porque o não estão [as palavras], é que há pronomes». Longe de mim, aliás, discordar de tal afirmação, pois essa é a definição, por excelência, do conceito «pronome». Penso até que será, talvez, um pouco forçada essa dedução a partir das palavras por mim usadas. Admito, ainda assim, que a escolha da expressão «sendo assim» não tenha sido a mais feliz no contexto em análise, podendo eu, eventualmente, ter optado por uma outra. De facto, se fosse essa a interpretação das minhas palavras, teria o consulente toda a legitimidade para afirmar o que afirmou na passagem seguinte: «Se fosse válido este princípio do Ciber, desapareceriam os pronomes possessivos, demonstrativos e muitos indefinidos. E eles fazem falta ao estudo da frase.» Porém, como não foi essa a minha intenção, penso que ficará sem efeito tal conclusão.
No que diz respeito à classificação «daqueles um como determinantes artigos indefinidos», mais uma vez saliento a ideia de que tentei enveredar por uma perspectiva que fosse o mais abrangente possível. Tendo novamente como base de sustentação Mateus e outros (2003, p. 347) — os artigos indefinidos (ao contrário dos definidos) podem surgir isolados por elipse do nome —, imaginei esta mesma frase redigida, por exemplo, das seguintes formas: «Eu comprei uns queijos, e tu ainda me deste um», ou «Eu comprei uns queijos, e tu ainda me deste uns», ou ainda «Eu comprei um queijo, e tu ainda me deste uns». Nestes contextos, construídos de forma semelhante à da frase original, penso que dificilmente poderemos considerar que, na maior parte dos casos apresentados, estejamos na presença de numerais cardinais, tanto mais que poderíamos dizer, por exemplo, «Eu comprei uns [dois] queijos, e tu ainda me deste uns [três]», estando nós aqui na presença, creio eu, de um processo elíptico: «Eu comprei uns queijos, e tu ainda me deste uns [queijos]», podendo realmente uns exprimir uma quantificação existencial (Mateus e outros, op. cit., p. 356), ainda que, no Dicionário Terminológico, esta palavra não surja na lista dos quantificadores. Por outro lado, Cunha e Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, descrevem um apenas como artigo indefinido, e Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, 2002), como artigo indefinido (pp. 160-161) e pronome indefinido adjectivo (p. 168).
Em jeito de conclusão, devo dizer que, sendo correcta, pertinente e bem fundamentada a sua análise, existirão, como concordará comigo, outros ângulos de abordagem à questão, podendo até, em alguns casos, ser mais abrangentes e proporcionar a quem pergunta maior latitude de leitura dos problemas colocados.
Mais uma vez, agradeço a sua profícua contribuição.
1 Tradução livre: «Cada um vê apenas o seu lado, não o outro.»