Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2 pela mesma instituição. Com pós-graduação em Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, trabalha na área da revisão de texto. Exerce ainda funções como leitora no ISCTE e como revisora e editora do Ciberdúvidas.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Acabo de ler, escrita por um autor muito bom, a seguinte frase: «Todas quanto abraçaram esta via foram bem-sucedidas».

A minha dúvida prende-se com o «quanto» invariável, que me soa mal. Admito, porém, que o erro seja meu.

Em suma: devemos escrever como acabo de referir ou antes «Todas quantas abraçaram [...]»?

Resposta:

Tal como o consulente sugere, a frase – «Todas quanto abraçaram esta via foram bem-sucedidas»   está incorreta. A forma correta tem de apresentar «quantas»: «Todas quantas abraçaram esta via foram bem-sucedidas». 

Acontece que o pronome relativo quanto, na frase em apreço, funciona como especificador de um nome implícito, e tem um antecedente – todas1 que expressa quantificação. Ora, nestes casos, o relativo quanto deve concordar em género e em número com o nome que específica e que está marcado pelo pronome indefinido todas:

1. «Todas quantas [pessoas] abraçaram esta via foram bem-sucedidas.»

Acrescente-se que quanto pode ter tudo como antecedente3 e, nesse caso, é invariável:

2. «Em tudo quanto abracei, fui bem-sucedido.»

Em suma, em (1) o pronome relativo quanto funciona como especificador de um nome implícito, e, neste caso, quanto é variável; em (2) quanto tem tudo como antecedente, e, assim, é invariável.

 

1 No tipo de contexto em questão, a atri...

Pergunta:

Atendendo às duas seguintes frases «O que você faz nos fins de semana?» e «Que tipo de coisa você faz nos fins de semana?», qual é explicação gramatical para na segunda frase o o ser omitido?

Obrigada, desde já, pela resposta.

Resposta:

Ao contrário do que pretende a consulente, não existe omissão do o na frases interrogativa «Que tipo de coisa você faz nos fins de semana?", por comparação com «O que você faz nos fins de semana?». Trata-se de duas questões semelhantes, mas introduzidas por pronomes interrogativos diferentes1.

Em «O que você faz nos fins de semana?», aparece o pronome substantivo interrogativo o que, que tem como finalidade «dar maior ênfase à pergunta, em lugar de que pronome substantivo»2.

Por outro lado, e«Que tipo de coisa você faz nos fins de semana?», ocorre o pronome adjetivo interrogativo que, semelhante a qual («qual tipo?»). Neste segundo caso, não há omissão do determinante o, pois ele não faz parte do uso de que como pronome adjetivo. Por outras palavras, não alternando o pronome adjetivo interrogativo que com a forma o que, não é possível *«o que tipo de coisa você faz?»2

 

Pergunta:

Hoje, na aula de Português, foi abordado o grau superlativo absoluto sintético. O professor deu algumas regras, exemplos e trabalhos para casa. Numa das flexões constava o adjetivo “cortês”.

Como não tinha a certeza da resposta, fiz uma pesquisa no dicionário Priberam e depois no blogue Língua Portuguesa e Literatura do Folcloreaté que encontrei a solução “cortesíssimo”.

A minha dúvida consiste no seguinte: com a terminação -ês aplica-se a regra geral e adiciona-se -íssimo?

Antecipadamente agradeço a ajuda prestada.

Resposta:

O grau superlativo absoluto sintético do adjetivo cortês é, como refere o consulente, cortesíssimo

Ao adjetivo cortês, agrega-se somente o sufixo -íssimo, marca do grau superlativo absoluto sintético1. Encontra-se confirmação deste procedimento num outro exemplo mais comum, o de português, que, no grau superlativo absoluto sintético, tem a forma portuguesíssimo1.

Importa referir que que o adjetivo em análise, cortês, é usado preferencialmente no grau normal ou no grau superlativo absoluto analítico: «ele é muito cortês». Daí talvez suscitar dúvidas quanto à sua forma no superlativo absoluto sintético.

 

1 Na Nova Gramática do Português Contemporâneo, (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, pp. 259/259), de Celso Cunha e Lindley Cintra, o adjetivo cortês não se insere em nenhumas das exceções aí descritas – não termina em vogal (belo + -íssimo > belíssimo), nem em -z (capaz + -íssimo > capacíssimo), nem em -vel (amável + -íssimo > amabilíssimo), nem em vogal nasal (comum + -íssimo > comuníssimo), nem em ditongo -ão (vão + -íssimo > vaníssimo).

Pergunta:

Nem associa-se em geral ao significado «e não», como no exemplo «Não tenho peras nem maçãs».

No entanto, como se justifica o uso de nem na seguinte frase: «Viajar é bom, mas nem todos temos dinheiro para isso»?

Resposta:

De facto, na frase apresentada – «Viajar é bom, mas nem todos temos dinheiro para isso» –, não é possível substituir nem por não. Não se aceita, portanto, «"não todos" temos dinheiro»1.

Sobre a sequência «nem todos», como negação do quantificador universal todos, observa-se na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, p. 482) que ela só ocorre em posição inicial de frase ou oração: «Nem todos temos dinheiro para isso»; «Viajar é bom, mas nem todos temos dinheiro para isso» (neste caso, nem todos figura logo após a conjunção mas). A gramática em referência acrescenta:

«[Um] constituinte de negação de universalidade com nem [nem todos, nem sempre] só pode surgir em posição não inicial numa oração se outro constituinte for topicalizado, como em o livro, nem todos os estudantes o tinham lido (no caso, o constituinte inicial o livro está deslocado para a posição inicial).

Trata-se de uma construção cuja  motivação nem a fonte consultada esclarece cabalmente nem outras gramáticas chegam a registar 2.

 

1 É, no entanto, possível ocorrer «não todos» como negação com escopo somente sobre o quantificador, antes de uma construção adversativa (geralmente marcada por mas): «Li livros de Eça de Queirós,

Pergunta:

Frente e fronte têm uma origem comum?

Muito obrigada.

Resposta:

De acordo com o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, e com o Dicionário Houaissfrente fronte tem origem no latim fronte-: «fronte, testa, rosto, semblante, cara».

Apesar da mesma origem, o substantivo frente – com registos desde o século XVIII, de acordo com o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa  chegou até nós pelo castelhano frente, forma mais tardia de fruente, também com origem no latim fronte-.

Já fronte é palavra patrimonial, pois chegou ao português por via direta do latim, com registos desde o século XIII (ibidem). 

Estes dois substantivos estão, atualmente, dicionarizados com significados próximos: fronte, nas aceções de «testa; cabeça; rosto; parte da frente de algo, dianteira»; frente, com os significados de «parte anterior, lado frontal; testa; rosto, face; frontaria, fachada». Como substantivos, portanto, são sinónimos, mas em locuções adverbiais e prepositivas, é quase sempre frente que ocorre: «em frente(de)», «à frente (de)», «para a frente (de)», «de frente». Contudo, a forma mais antiga, fronte, mantém-se, por exemplo, no advérbio defronte (de + fronte): «ela mora ali defronte» (Dicionário Houaiss).