Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2 pela mesma instituição. Com pós-graduação em Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, trabalha na área da revisão de texto. Exerce ainda funções como leitora no ISCTE e como revisora e editora do Ciberdúvidas.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Um aluno meu escreveu a seguinte frase num exercício sobre reclamação num restaurante:

«... Por favor senhor, mais valia que não me perguntasse nada. O peixe foi muito salgado e em cima de tudo tive a impressão que o peixe não cheirasse bem. Que pena que houvesse areia na salada!»

Segundo o que eu considero correto, corrigi os verbos para: «... O peixe ESTAVA muito salgado e em cima de tudo tive a impressão que o peixe não CHEIRAVA bem. Que pena que HAVIA areia na salada!»

Em relação ao primeiro verbo o aluno entendeu: optamos por estar em vez de ser porque é uma situação temporária. Mas em relação aos outros dois verbos, ele colocou no imperfeito do conjuntivo porque ele «teve a impressão», ou seja, como é uma suposição e não uma certeza, na opinião do aluno tem de ser no conjuntivo e não no indicativo.

Contudo, eu não acho que esse modo verbal fique adequado nas frases mencionadas. É válido também o uso do pretérito imperfeito do indicativo para expressar suposições?

Como posso explicar isso aos alunos?

Fico muito grata pela vossa ajuda!

Resposta:

Analisem-se as frases isoladamente: 

(1) «Tive a impressão que o peixe não cheirava bem».

Aqui, a opção pelo indicativo, ao invés do conjuntivo, está correta. Acontece que «ter a impressão», apesar de ser uma expressão que semanticamente se aproxima dos valores da suposição, funciona como equivalente a achar ou parecer:

(i) «Achei/pareceu-me que o peixe não cheirava bem».

Ora, verbos como achar ou parecer, quando ocorrem em frases afirmativas, selecionam o indicativo. Se, por outro lado, a frase for negativa, então aí o predicador associado ocorre no conjuntivo:

(ii) «Não achei/me pareceu que o peixe cheirasse bem».

A premissa de que, sempre que se está no campo da suposição, o verbo deve ocorrer no conjuntivo é, assim, incorreta. 

Veja-se agora o segundo caso: 

(2) «Que pena que havia areia na salada!»

Este exemplo é a correção feita pela professora, que substituiu o verbo no conjuntivo – houvesse  pelo pretérito imperfeito do indicativo – havia. Contudo, a frase escrita pelo aluno estava correta:

(3) «Que pena que houvesse areia na salada!»

Talvez a correção feita se prenda ao facto de, aqui, não estarmos perante uma suposição, mas sim uma realidade, i.e., existia, de facto, areia na salada. Contudo, após expressões de apreciação, como é o caso de «que pena» (ou «é melhor que...», «lamento que...», «irrita-me que...», por exemplo), o verbo ocorre no conjuntivo ou no infinitivo:

(4) «Que pena haver areia na salada.»

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Pergunta:

O verbo coçar pode ser usado com o sentido de «fazer comichar», como no seguinte exemplo»?

«Urticária – caracterizada por placas avermelhadas com relevo na pele, que coçam muito.»

Obrigada.

Resposta:

Os verbos coçarcomichar são sinónimos quando com eles queremos dizer «produzir coceira/comichão». Por isso tanto é aceitável:

(1) «Urticária – caracterizada por placas avermelhadas com relevo na pele, que coçam muito.»

como: 

(2) «Urticária – caracterizada por placas avermelhadas com relevo na pele, que comicham muito.»

Do mesmo modo, também é aceitável a construção «fazer comichar»: 

(3) «Urticária – caracterizada por placas avermelhadas com relevo na pele, que fazem comichar muito.»

Neste último caso (3), estamos perante uma construção causativa, i.e., o verbo fazer exprime a ideia de que o sujeito da oração («placas avermelhadas com relevo») causa a ocorrência da ação ou processo.

Contudo, esta sinonímia parece só dar-se em português do Brasil1. Em português de Portugal, coçar usa-se essencialmente quando nos referimos a «esfregar uma parte do corpo com as unhas ou com um objeto áspero, para acalmar uma sensação de irritação ou prurido na pele» (Dicionário da Língua Portuguesa). Daí poder afirmar-se que em português de Portugal são mais comuns as frases (2) e (3).

Note-se, ainda, que o verbo comichar parece ter pouco uso, no registo oral, pelo menos. Em sua substituição, é comum ouvirmos a expressão «dar/ter comichão» (co...

Pergunta:

A frase «Viajando, podemos evoluir o nosso raciocínio», a meu ver, não está coerente.

Poder-se-ia ter utilizado o verbo fazer («Viajando, podemos fazer evoluir o nosso raciocínio»)?

Obrigado.

Resposta:

O verbo evoluir é intransitivo e, por isso, não tem complemento direto, como em «Viajando, podemos evoluir o nosso raciocínio» («o nosso raciocínio» seria o complemento direto do verbo evoluir, o que não é possível).

Por isso, a frase apresentada pelo consulente é a solução acertada:

(1) «Viajando, podemos fazer evoluir o nosso raciocínio.»

Neste caso, estamos perante uma construção causativa, i.e., o verbo fazer, verbo causativo, é o verbo transitivo direto seguido do verbo evoluir, intransitivo, construção que já é aceite, porque, de facto, já se se pode fazer evoluir alguma coisa. 

Pergunta:

Conheço a expressão «círculo vicioso», «circularidade» ou «petição de princípio», sendo uma falácia da lógica informal, em que se parte de A para concluir A. No entanto, a propósito de terem criticado a sua teoria institucional da arte por ser circular, George Dickie alude a um «círculo virtuoso», expressão que desconheço.

O que é um «círculo virtuoso» e em que medida se distingue de um «círculo vicioso»?

Resposta:

A expressão «círculo virtuoso» encontra-se atestada em dois dicionários em linha: o da Infopédia e o de Caldas Aulete, na versão digital atualizada. É «o mesmo que "círculo vicioso", mas com conotação positiva de que as consequências realimentam beneficamente o processo, tornando-o melhor, mais eficiente, satisfatório, etc.» (Dicionário Aulete). O mesmo dicionário refere que é uma «expressão de cunho recente, criada como extensão simétrica de círculo vicioso (esta há muito registrada na língua), e não reconhecida por alguns.»

Veja-se alguns exemplos onde ocorre a expressão:

(1) «O depósito de trabalhos está a aumentar, ainda que tenha existido uma inércia inicial, “mas quando começam a ver a utilização que os seus trabalhos têm no repositório começam a ganhar esse hábito e é criado um círculo virtuoso”.» (Recortes IPB);

(2) «Mais inovação aumenta produtividade, que por sua vez gera mais crescimento. É um círculo virtuoso que se autoalimenta, mas que, no entanto, é difícil de iniciar.» (Jornal de Negócios).

Em relação a «círculo vicioso», vejam-se os Textos Relacionados.

Pergunta:

É correto dizer «aceito sem qualquer problema»?

Ou deveriamos dizer «aceito sem nenhum problema»?

Resposta:

De acordo com a maioria dos dicionários consultados1, nos casos apresentados, nenhumqualquer não são sinónimos, por isso, e uma vez que o que se pretende dizer é que se aceita [a situação] excluindo todos os problemas que possam existir, então o correto seria: «aceito sem nenhum problema».

O uso de nenhum, de facto, é, aqui «usado para excluir qualquer dos indivíduos da espécie referida pelo substantivo ou pronome a que está ligado; nem um» (Dicionário Houaiss). Já qualquer não tem sentido de exclusão, daí a frase «aceito sem qualquer problema» não poder ser aceite. 

Contudo, a verdade é que qualquer é muitas vezes utilizado, principalmente no discurso oral, com o sentido do pronome indefinido nenhum, i.e., tem emprego em contexto negativo (o dicionário Aulete atesta exatamente isso) e, por isso, a aceitabilidade desta sinonímia parece ganhar força:

«Assim, o telefone pode voltar a ficar em a escola sem qualquer problema, finaliza.» (Público, in Corpus do Português)

«O vereador Mota Alves, que supervisionou a operação, adiantou que a demolição foi feita por máquinas dos serviços camarários sem que tenha havido qualquer problema com a comunidade cigana.» (iCorpus do Português)

Veja-se ainda que nenhum e qualquer podem ser sinónimos se nenhum for ut...