Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2 pela mesma instituição. Com pós-graduação em Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, trabalha na área da revisão de texto. Exerce ainda funções como leitora no ISCTE e como revisora e editora do Ciberdúvidas.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

A dúvida que se prende é com utilização da palavra gente, que por vezes pode revelar-se um pouco "traiçoeira". Na frase em consideração tenho alguma dificuldade em conseguir perceber se a mesma está ou não correcta[*]. Podem ajudar-me, por favor?

«(...) Gente mascarada em torno de uma fogueira de labaredas altas unia as vozes e num só cântico dançava, bebia, expurgava as suas almas como se estivesse possuída.»

Obrigado.

[*N.E. – Manteve-se a forma correcta, anterior ao Acordo Ortográfico de 1990, no quadro do qual se escreve agora correta.]

Resposta:

O nome comum coletivo gente, na oração em apreçoestá correto e significa «pessoas». 

Talvez a dúvida se prenda com a concordância em número com o pronome possessivo as suas, que se encontra no plural, ou seja, não concorda em número com gente. Ora, semanticamente, podemos aceitar a pluralização do determinante possessivo como correta, pois gente refere-se a um grupo de pessoas que, individualmente, tem a sua alma. Falamos, portanto, de concordância pelo sentido (concordância siléptica).

No entanto, sintaticamente, a concordância correta é no singular: ao optarmos pela forma singular do determinante possessivo – «gente mascarada [...] expurgava a sua alma» – assumimos que alma, no singular, está por todas as pessoas subentendidas no termo gente.

Pergunta:

«Às vezes» ou «há vezes»?

Resposta:

Ambas as construções estão corretas, têm é sentidos diferentes. Vejam-se os exemplos

(1) Às vezes – é uma locução adverbial, com valor temporal, que significa «em algumas ocasiões ou circunstâncias; por vezes» (Dicionário Priberam) e é sinónimo de «por vezes»;

(2) Há vezes –  nesta expressão o verbo haver emprega-se como impessoal, ou seja, «quando significa existir ou quando indica tempo decorrido, casos em que se conjuga tão-somente na 3.ª pessoa do singular » (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português ContemporâneoLisboa, Sá da Costa, 2002, p. 534). Assim, quando dizemos «Há vezes em que não me apetece sair de casa», queremos dizer que existem algumas ocasiões em que não temos vontade/desejo de sair de casa. 

 

Cf. HÁ ou À: a razão de tantos erros nisto

Pergunta:

Qual a palavra correta: "estacionaridade" ou "estacionariedade"? Ou ambas poderão ser utilizadas?

Esta questão surge na sequência de testes efetuados no âmbito da econometria, com o intuito de analisar se determinadas variáveis são ou não estacionárias.

Resposta:

A forma correta será estacionariedade. 

Este substantivo é formado a partir do adjetivo estacionário, e a ele associa-se o sufixo -dade. Note-se que este adjetivo, à semelhança de outros como solidário, precário, sóbrioetc, que terminam com duas vogais (-io) e formam solidariedade, precariedade e sobriedade, perde uma das vogais, a última, que é substituída por -e a que se associa o sufixo -dade. 

Pergunta:

Estava lendo Peregrinação de Barnabé das Índias, de Mário Cláudio, quando lá pelas tantas me deparo com a palavra "incompagináveis". Pergunto-lhes que significado essa palavrinha tem. A mesma de incompatíveis, talvez?

Como aparentemente não há registro dela em dicionários, posso concluir tratar-se de um neologismo?

Resposta:

O adjetivo incompaginável tem como significado «que não se pode ligar intimamente, encadear, unir ou enlaçar». É uma palavra derivada por prefixação, ou seja, ao adjetivo compaginável, «que se pode ligar, encadear, unir ou enlaçar», agregamos o prefixo de negação in-.

Por sua vez, compaginável deriva por sufixação do tema (compagina-) do verbo compaginar, «meter em página» e, por sentido figurado, «ligar intimamente» ou «conciliar»; o sufixo -vel  confere o sentido de possibilidade de praticar ou sofrer uma ação.

Apesar de não estar registado nos dicionários consultados, incompaginável, à semelhança de muitas outras palavras prefixadas com in-, parece ter existência latente, ficando acessível a qualquer falante. Mesmo assim, pode considerar-se um neologismo, mas apenas na medida em que o seu uso se tem tornado mais notório em tempos mais recentes.

Com efeito, uma consulta do Corpus do Português, Mark Davies, mostra que este vocábulo está ausente da secção de textos mais antigos, mas conta com uma ocorrência na coleção de textos mais recentes:

(1) «Este valor é incompaginável com os comportamentos e as condições de vida ostentados por uma camada restrita da população. (jornal Expansão - Sapo)

Uma consulta Google sugere também que incompaginável figura de forma mais assídua em textos mais recentes, das duas últimas décadas:

Pergunta:

Gostaria que me confirmassem a existência (ou não) do vocábulo "outorgação". Numa rápida pesquisa na Internet, vejo que o termo é frequentemente utilizado, mesmo por orgãos de comunicação de institutos e instituições públicas e oficiais (quer portuguesas, quer brasileiras).

Todavia, ao pesquisar por este vocábulo nos dicionários online (Priberam, Dicionário Informal e mesmo no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia de Ciências de Lisboa) vejo que o termo não existe "oficialmente". Nestes dicionários e vocabulários, somente encontro a forma verbal outorgar e o adjectivo outorgável, mas nunca o substantivo "outorgação".

Agradecia um esclarecimento sobre este caso.

Resposta:

Apesar de não se encontrar registado nos dicionários referidos, a verdade é que o substantivo outorgação está bem formado. Estamos perante um substantivo derivado por sufixação: ao tema do verbo outorgar – «consentir em; conceder; estipular, declarar (em escritura pública)» (Dicionário Priberam foi agregado o sufixo -ção, o que veicula ao substantivo outorgação o sentido de ação.

No entanto, importa observar que este substantivo não tem implantação, porque existem outros sinónimos que ocorrem efetivamente no uso e figuram sistematicamente no discurso oral ou escrito: outorga (substantivo feminino) – «ato ou efeito de outorgar; concessão, doação; aprovação, consentimento» (dicionário Infopédia–  e outorgamento (substantivo masculino), tendo o primeiro preferência sobre o segundo.