Miguel Moiteiro Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Miguel Moiteiro Marques
Miguel Moiteiro Marques
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Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Portugueses e Ingleses) pela Faculdade Letras da Universidade de Lisboa e mestrando em Língua e Cultura Portuguesa na mesma faculdade.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber a razão de se dizer «Os quatro cantos do mundo» se a Terra é redonda. Poderia ser um canto por cada continente, mas eles são cinco...

Obrigada pela informação.

Resposta:

A pergunta que apresenta vai um pouco além do âmbito do Ciberdúvidas, mas fica uma possível explicação.

A expressão é anterior à conceptualização do mundo como tendo cinco continentes (na verdade, 6 – Ásia, África, América, Antártida, Europa e Austrália – ou mesmo 7, se dividirmos a América em duas partes). É possível encontrar essa expressão em textos contemporâneos à descoberta do Novo Mundo (as Américas), altura em que apenas 4 continentes eram conhecidos.

Mas, na verdade, já a versão latina da Bíblia, a Vulgata escrita por S. Jerónimo no século IV, apresentava essa noção dos quatro cantos (ou ângulos) da Terra no livro do Apocalipse: «Post haec vidi quattuor angelos stantes super quattuor angulos terrae tenentes quattuor ventos terrae ne flaret ventus super terram [...]» (Apocalipse, 7:1). Na tradução da Edição Pastoral (revisão literária do padre João Gomes Filipe), temos a seguinte tradução: «Depois disto vi quatro Anjos, um em cada canto da Terra. Eles seguravam os quatro ventos da Terra. Assim, o vento não podia soprar na Terra, nem no mar, nem nas árvores.»1

Seria necessário um trabalho de exegese para determinar se os quatro ventos da tradução de S. Jerónimo estão nos originais hebraicos e gregos e qual o sentido que tomam. Mas, sem aprofundar muito, podemos considerar, talvez sem grande margem de erro, que os quatro ventos da Vulgata seriam os quatro ventos latinos Bóreas (norte), Noto ou Austro (sul), Zéfiro (oeste) e Eurus ou Vulturnus (leste), pelo que a expressão «os quatro cantos do mundo» remeterá para os pontos cardeais, e não para os continentes.

1 Infelizmente, não foi possível consultar a tradução Boa Nova, concluída em 1993 por uma equipa de filólogos, entre os quais João Soar...

Pergunta:

Qual das opções abaixo está correta: «literatura médico-científica», ou «literatura médica-científica»?
Ainda: esta palavra perdeu o hífen?

Resposta:

A regra indica que, nos adjetivos compostos, é o último elemento que recebe tanto a forma do plural como a marca do género feminino, salvo algumas exceções (cf. Celso Cunha e Lidley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, p. 253 e p. 256).

O composto médico-científico/a será, pois, um caso regular e, como constitui uma unidade sintagmática e semântica (referindo-se, até, a um género textual específico que é mais do que a soma dos dois elementos do composto) e mantém acento próprio, deve ser mantido o hífen: «literatura médico-científica».

Pergunta:

Que processo de formação está subjacente à palavra sobrevivente?

Obrigada.

Resposta:

Está subjacente um processo de derivação por sufixação, visto que a palavra sobrevivente deriva do verbo sobreviver, ao qual se junta o sufixo -nte, com o qual se formam muitos adjetivos e substantivos. Quanto ao próprio verbo sobreviver, vem do latim supervīvo,is,xi,ctum,ĕre (Dicionário Houaiss).

Realce-se que o prefixo super- era utilizado no latim com diversos sentidos, entre os quais o de «mais do que», o qual se aplicará ao caso de [sobre]vivente.

Pergunta:

Gostaria de saber se está certo empregar a vírgula no seguinte caso, pois acredito que reunião extraordinária se tornou o sujeito do verbo realizada, pelo que não se poderia separar.

«Todos os sócios daquela empresa de contabilidade foram chamados para a reunião extraordinária, realizada no fim de semana.»

Resposta:

É verdade que a reunião extraordinária é o sujeito da oração «realizada no fim de semana», uma oração relativa participial reduzida (em que o pronome relativo não está presente). Repare que é possível tornar o sujeito expresso: [...] «para a reunião extraordinária, a qual foi realizada no fim de semana».

Quanto ao uso da vírgula, é o caso da distinção entre as orações relativas restritivas, que não podem ser separadas por vírgula, e as orações relativas explicativas, que são separadas por vírgulas, caso a que corresponde a frase apresentada. Os exemplos abaixo apresentados, com reformulação da frase referida pelo consulente, poderão ilustrar a diferença:

1. «[...] foram chamados para a reunião extraordinária, realizada no fim de semana.» — oração relativa explicativa (explica quando se realiza a reunião).

2. «[...] foram chamados para a reunião extraordinária realizada no fim de semana [e não para outra reunião extraordinária realizada noutro dia da semana].» — oração relativa restritiva (restringe/distingue das restantes reuniões aquela que foi ou será realizada no fim de semana).

Pergunta:

O que é um "pichitariano"?

Resposta:

Certamente, o consulente refere-se a piscitariano, termo que não está dicionarizado, nem contemplado nos vocabulários ortográficos do português.

Pelo que foi possível verificar, será uma adaptação do inglês pescetarian (também grafado como pescevegatarian ou piscetarian), nome utilizado para referir um vegetariano que consome peixe (a definição é dada na página da União Vegetariana Internacional).

O termo anglófono será uma amálgama da palavra italiana pesce (peixe) e da  palavra inglesa vegetarian (vegetariano) (ver The Free Dictionary). Em português, por analogia com outros termos como piscicultura ou pisciano («aquele que nasceu sob o signo Peixes»), a opção na tradução terá sido piscitariano, que aparenta ser uma amálgama de pisci-, com origem no latim piscis, com [vege]tariano.