Miguel Moiteiro Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Miguel Moiteiro Marques
Miguel Moiteiro Marques
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Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Portugueses e Ingleses) pela Faculdade Letras da Universidade de Lisboa e mestrando em Língua e Cultura Portuguesa na mesma faculdade.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na construção da frase «A reunião contou com a presença de diretores, funcionários e demais membros da empresa», devo dizer «a presença» em lugar de «as presenças», mesmo se tratando de diversas pessoas? Por quê?

Resposta:

É também possível dizer «A reunião contou com as presenças de diretores, funcionários e demais membros da empresa», mas temos um conhecimento intuitivo de que esta frase é diferente daquela que o consulente apresenta.

Aquilo que parece suceder é que, à semelhança dos nomes coletivos, como turma ou esquadra, o especificador a indica a singularidade e a unicidade do designado. Dito de outra forma, ao referir «a presença de X, Y e Z», os complementos do nome são tomados como um conjunto, enquanto, se disser «as presenças de X, Y e Z», estou a considerar individualmente cada complemento como parte do conjunto.

Será por isso, talvez, que no primeiro caso não seja possível utilizar quantificadores existenciais como alguma antes do núcleo, ao passo que o quantificador já será admissível no segundo caso, mesmo sendo uma construção atípica; será também possível colocar antes do núcleo os quantificadores que indicam pluralidade, como inúmeras, muitas, várias, diversas, diferentes, bastantes, poucas1.

1) *«A reunião contou com alguma presença de diretores, funcionários e demais membros da empresa.»

2) ?«A reunião contou com algumas/muitas/bastantes presenças de diretores, funcionários e demais membros da empresa.»

3) «A reunião contou com umas quantas presenças de diretores, funcionários e demais membros da empresa.»

1 O asterisco indica "agramaticalidade"; o ponto de interroga...

Pergunta:

Quando se diz que a Angola é dos Angolanos, alguém tem a intenção de afirmar que o nosso país é só dos homens? Seria necessário dizer que a Angola é dos Angolanos e das Angolanas?

Resposta:

A questão que apresenta é, de certo modo, abordada nesta resposta sobre a concordância do género e nesta sobre o uso do símbolo @ para fazer a concordância de género.

Na gramática da língua portuguesa, os plurais são formados no masculino quando há, pelo menos, um elemento masculino no conjunto. Há casos particulares que divergem na aparência, como o de avós.

Quando diz «Angola é dos Angolanos», Angolanos é uma referência aos cidadãos do sexo masculino e do sexo feminino com nacionalidade angolana e está correta gramaticalmente. Pode optar, por razões de marcação de uma posição política (no sentido lato), pela expressão «Angola é das Angolanas e dos Angolanos», mas tal não é obrigatório do ponto de vista gramatical. É uma opção baseada em factores que vão para lá da léxico-gramática.

Como ponto de partida para leituras sobre este tema, poderá passar os olhos por este artigo sobre os processos da denominada higiene verbal (um conceito da Análise Crítica do Discurso) e do "politicamente correto". Será também interessante (e divertido) ler este texto do escritor Luís Fernando Veríssimo sobre o feminino de sexo.

Pergunta:

Preparo um e-mail de agradecimento. Na parte final do texto, indico os departamentos. Gostaria de saber se devo ordenar os mesmos por ordem alfabética ou hierarquia. O que é mais correto? Abaixo, um exemplo, ordenado por ordem alfabética:

«À Agenda, à Coordenação, à Edição, aos Editores Executivos, à Produção, à Realização e à Subdireção, agradeço (...).»

Muito obrigada.

Resposta:

As duas opções são válidas, mas refletem condicionamentos e objetivos diferentes:

1) a ordenação por ordem hierárquica marca também a subordinação dos elementos (dito de um modo coloquial, indica «quem manda em quem»); esta ordenação deverá ser usada em contextos formais para marcar reverência ou seguir códigos estipulados de interação, em particular em contextos institucionais (a comunicação no circuito diplomático, por exemplo, é fortemente condicionada pela hierarquia dos intervenientes e segue regras de formulação bastante rígidas);

2) a ordenação alfabética faz apenas uma classificação com base num critério estritamente linguístico; utilizando a terminologia da Linguística Sistémico-Funcional, que poderá servir para melhor explicar este caso, a ordenação alfabética pretende ter apenas uma dimensão léxico-gramatical, ignorando o contexto de situação e o contexto cultural, o que se traduziria numa imparcialidade face aos intervenientes enunciados1; esta ordenação é usada quando se pretende realçar a importância de todos os intervenientes, atribuindo-lhes igual valor (social, profissional, etc.) e evitando "ferir susceptibilidades".

A opção dependerá do contexto e dos seus objetivos. Pelo que se percebe do exemplo dado pela consulente, em causa estão departamentos do mesmo nível hierárquico, pelo que a ordenação alfabética será adequada. Caso contrário, poderá optar pela conjunção dos dois tipos de ordenação: por hierarquia e, dentro de cada grupo, uma ordenação alfabética.

1 Este posicionamento do falante não deixa de ser, ele próprio, determinado pelos contextos: alguém opta por ignorar o contexto em função de um posicionamento cultural.

Pergunta:

A minha pergunta é: os nomes próprios em português são traduzíveis para inglês e vice-versa?

Resposta:

Assumo que o consulente se refere aos nomes de pessoas, mas em todo o caso a seguinte reflexão também se aplica a nomes de lugares ou expressões que remetem para uma entidade particular ou individual.

Na linha da tradição gramatical da língua portuguesa, Rebelo Gonçalves, no Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1947), recomendava: «dar uso normal às formas vernáculas de apelidos estrangeiros de renome, designadamente de escritores, eruditos e cientistas, sempre que essas formas tenham tradição ou, embora não a tendo, resultem de correcto aportuguesamento.» Nesse sentido, Rebelo Gonçalves propunha, por exemplo, Jorge Bucanano para nomear o humanista escocês do século XVI George Buchanan, ou Hamleto para nomear a personagem que dá nome ao clássico drama escrito por Shakespeare (cf. Rebelo Gonçalves, Vocabulário da Língua Portuguesa, 1966).

Acontece que a tradição, como dizia um certo anúncio, já não é o que era e, no âmbito da ciência da linguística, tradição deve ser vista como a forma consagrada pelo uso e não tanto como dogma ou legado transmitido de geração em geração, articulando-se com a noção de mudança linguística decorrente, entre outros fatores, dos contactos com outras línguas. Numa era de intensa circulação de pessoas e de bens e de generalização das relações transfronteiriças, suportadas por meios tecnológicos como a televisão ou a Internet, certas formas tornaram-se mais familiares. Daí decorre que, a haver um uso vernacular de Buchanan, este não seria o sisudo Bucanano, mas, sim, risível Bacano, como no apodo «Mitch Bacano» para referir o popular nada...

Pergunta:

Qual a diferença entre desconsertado e desconcertado?

Resposta:

De acordo com o Dicionário Houaiss, desconsertado indica algo «posto fora de funcionamento; estragado, desarranjado, desordenado», e desconcertado significa «não concertado; sem harmonia, sem ordem».

A etimologia dos termos é diferente. De acordo com o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, desconsertado é o particípio de desconsertar (des + consertar) e tem origem no latim vulgar consertāre, frequentativo do latim clássico conserĕre com o significado de «ligar, atar, juntar partes entre si» (frequentativo será a referência ao aspeto do verbo, ou seja, caracteriza uma ação que se repete, como saltitar; neste caso, consertare seria algo como «ligar ou juntar várias partes repetidamente até um determinado conjunto estar completo»).

Por sua vez, desconcertado é o particípio passado de desconcertar (des + concertar), do latim concerto, as, āvi, ātum, āre com o sentido de «combater, lutar, disputar». Esse sentido foi estendido a «harmonizar, ajustar», uma vez que uma luta visa um ajuste. É com este sentido que temos expressões como concertação social para indicar a ligação entre partes, no caso específico o estabelecimento de acordos ou consensos entre o governo, as organizações sindicais e as organizações empresariais (o caso de concerto para referir uma peça musical surge mais parte, já no século XIX, por influência do italiano, refere José Pedro Machado).

Há, pelo que foi acima descrito, uma área em que os campos semânticos dos dois termos são coincidentes: consertar e concertar remetem ambos para uma...