Miguel Moiteiro Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Miguel Moiteiro Marques
Miguel Moiteiro Marques
15K

Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Portugueses e Ingleses) pela Faculdade Letras da Universidade de Lisboa e mestrando em Língua e Cultura Portuguesa na mesma faculdade.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber a origem e o significado da expressão «espírito santo de orelha».

Resposta:

Não conseguimos localizar informação sobre a origem da expressão apresentada pelo consulente; apenas localizámos informação sobre o seu significado.

«Espírito santo de orelha» poderá ser o apodo atribuído à «pessoa que intriga junto dos superiores» ou aquilo que se chama ao «indivíduo que, num exame ou numa chamada à lição, procura auxiliar outrem, murmurando-lhe as respostas que ele deveria dar ao examinador» (Dicionário Prático de Locuções e Expressões Correntes, Emanuel de Moura Coura e Persília de Melim Teixeira). Este será o sentido em frases como «Fulano é um espírito santo de orelha» ou «Fulano tem um espírito santo de orelha».

Outro sentido é apresentado no Dicionário de Expressões Populares Portuguesas, de Guilherme Augusto Simões, em que a expressão quer dizer «ouvir por alto» ou «ter indícios por informações» que não são fidedignas, como na frase «Ouvi de um espírito santo de orelha».

As duas interpretações da expressão estão, por sua vez, contempladas no Dicionário de Expressões Correntes, de Orlando Neves: «pessoa que procura intrigar outrem junto dos superiores» e «conhecimento de algo que se obtém por se ter ouvido dizer», ou seja, intriga ou intriguista.

Pergunta:

Nos últimos tempos tenho visto com frequência usar-se o termo internacional para designar tudo aquilo que se passa em ou diz respeito a outros países. Exemplos: «bolsas internacionais», «actualidade internacional», «empresas internacionais», «especialistas internacionais» e até «cidadãos internacionais».

No entanto, creio que a utilização do termo internacional para designar o que é espanhol, alemão ou americano é objectivamente errada e que seria preferível o termo estrangeiro para designar o que não é português (salvo se se tratar de casos de empresas ou entidades que sejam, realmente, multinacionais).

Resposta:

O consulente tem razão ao dizer que internacional não se refere simplesmente a algo com origem no estrangeiro; o adjetivo internacional aplica-se ao que é relativo (concomitantemente) a duas ou mais nações, ao que é promovido entre nações ou àquilo que está relacionado com uma autoridade internacional (Dicionário Houaiss; dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Priberam, Infopédia). Contudo, esta palavra pode ser usada também como sinónimo não só de mundial, cosmopolita, global, universal, mas também de exterior, estrangeiro e externo (Dicionário Houaiss de Sinônimos e Antônimos; Dicionário Universal de Sinónimos e Antónimos).

No que se refere aos exemplos referidos pelo consulente, a expressão «atualidade internacional» está já consagrada no mundo jornalístico de expressão portuguesa (ver, por exemplo, Jornal do Brasil, agência Angola Press (Angop) ou a rádio TSF. Outros órgãos, talvez por influência da designação anglófona world news, optam por mundo ou globo para designar as notícias do estrangeiro (cf. Folha de S. Paulo, Público ou RTP)...

Pergunta:

Gostaria de saber qual a regência correta do verbo cumprimentar.

Resposta:

O verbo cumprimentar pode ser usado em diferentes estruturas sintáticas:

1) Com complemento direto:

«O jogador cumprimentou o árbitro.»

2) Com complemento direto e complemento preposicional:

«O treinador cumprimentou os jogadores pelo bom resultado.»

3) Com pronome reflexo (e sujeito no plural):

«Os jogadores cumprimentaram-se no final do jogo.»

O Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses (org. Malaca Casteleiro) admite ainda o uso intransitivo de cumprimentar:

4) «Ela tem o hábito de cumprimentar.»

Pergunta:

Nas frases seguintes, nele pode ser substituído por lhe?

1 – «Toquei nele.»

2 – «Não mexi nele.»

Resposta:

Sim, pode substituir a forma tónica do pronome pessoal pela forma átona. A construção de valor transitivo indireto dos verbos tocar e mexer é feita com complemento indireto introduzido pela preposição em, a qual contrai com a forma tónica do pronome pessoal nas frases «Toquei nele» (tocar + em + ele) e «Não mexi nele» (mexer + em + ele). Se usar as formas átonas, terá de alterar a ordem dos constituintes na frase 2:

1 – «Toquei-lhe.»

2 – «Não lhe mexi.»

Pergunta:

Gostava de saber se, na frase «Interessa-nos ainda o modo como certas pessoas com dificuldades de relacionamento interpessoal se reinventam na rede como outro eu…», o verbo interessa é um verbo transitivo directo e indirecto.

Resposta:

Na frase em questão, o verbo interessar é transitivo indireto. O pronome nos é, neste caso, o complemento indireto, e a frase finita «o modo como certas pessoas com dificuldades de relacionamento interpessoal se reinventam na rede como outro eu…» é o sujeito.

Na construção intransitiva, o complemento indireto do verbo interessar é introduzido pela preposição a (Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses, org. Malaca Casteleiro). Na frase apresentada pela consulente, é utilizada a forma átona do pronome pessoal, pelo que a preposição não se realiza (cf. «Isso interessa-nos a nós», com redobro de pronomes ou clíticos, em que é utilizada a preposição). Se substituirmos a forma pronominal por «a gente» verificamos que a frase se torna agramatical:

*«Interessa a gente ainda o modo como certas pessoas com dificuldades de relacionamento interpessoal se reinventam na rede como outro eu...»

A forma transitiva de interessar não pode ser usada na frase em análise, com o sentido de «fazer sentir interesse» por algo (idem, Malaca Casteleiro), como na frase «O professor procurou interessar / interessou os alunos por questões ambientais». Mesmo uma reformulação da frase para transmitir este sentido seria, na minha opinião, remotamente admissível:

? «O modo como certas pessoas com dificuldades de relacionamento interpessoal se reinventam na rede como outro eu interessou-nos por psicologia»