Maria Regina Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Eu tenho mesmo de deixar aqui um breve comentário sobre esta coisa! Na realidade nem os mais doutos que se propõem ensinar o bom português têm o cuidado de conjugar devidamente o ter de. Para ser franco começo mesmo a duvidar sobre a forma correcta.
Por favor ajudem-me!

Resposta:

Utilizar a construção «ter que» em vez de «ter de» é, efectivamente, uma incorrecção muito vulgar. E de tanto se ouvir e ver escrita, pode acontecer até que alguém que domine a língua cometa essa incorrecção. Não foi o caso do consulente, que utilizou adequadamente a construção «ter de», já que quis dizer «vejo-me na obrigação de», «assumo o dever de».
No Ciberdúvidas há já várias respostas sobre este assunto [Os erros de Marcelo, Ainda os erros de Marcelo, Ter que e ter de, Ter que e ter de]. No entanto, como o consulente pretende um texto que afaste completamente as suas dúvidas, vou proceder a uma sistematização.
1. Ter de
Ter de é uma expressão utilizada quando se pretende dizer que se tem o desejo, a necessidade, a obrigação ou o dever em relação a uma qualquer acção: «tenho de me ir embora» (= sou obrigado a ir-me embora, devo ir-me embora, tenho necessidade de me ir embora), «ele tem de arrumar o quarto» (= ele deve arrumar, tem o dever de arrumar o quarto), «temos de nos ouvir uns aos outros» (= temos o dever ou a obrigação de nos ouvir).
Nesta situação, o verbo «ter» é um verbo auxiliar da conjugação perifrástica: auxiliar ter + preposição de + verbo no infinitivo. Assim, «ter de», por si só, significa «ter necessidade de», «precisar de», «ser obrigado a», «dever», designando, pois, a necessidade de praticar a acção expressa pelo verbo que se segue, que é o verbo principal.
2. Ter que
Nesta situação, o verbo «ter» não é um auxiliar; é um verbo com a plena significação de «possuir», «ser detentor de», «estar na posse de», «desfrutar», «usufruir»,...

Pergunta:

A minha dúvida é acerca da pronúncia padrão (de Portugal) das palavras "vereador", "vereação" e "verear", sobretudo no que diz respeito à sílaba inicial, motivada pelo texto "Os erros de Marcelo" de Maria Regina Rocha, no Pelourinho, onde se diz que a sílaba inicial dessas palavras tem um som aberto. Já tive sotaque brasileiro e, como tal, já pronunciei (ou poderia ter pronunciado) essas palavras com "e" aberto. No entanto, hoje ninguém suspeitaria desse meu anterior sotaque e não há qualquer possibilidade de eu pronunciar essas palavras à brasileira.

Resposta:

O "e" aberto referido diz respeito apenas à sílaba inicial e vem assim registado, por exemplo, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora (2004), e no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa (2001), como a pronúncia do português padrão.
Esclareço que não tive qualquer intenção de desvalorizar uma pronúncia em relação a outra. Apenas referi esse pormenor no texto evocado, dada a crítica feita pelo comentador.

Pergunta:

Os meus parabéns pelo comentário relativo aos erros do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa. Concordo em absoluto: uma vez que a televisão é um veículo cultural que chega a grande percentagem do nosso povo, todos os intervenientes deveriam ser ainda mais cuidadosos com o bom uso da nossa Língua.
Em relação às vossas correcções tenho uma dúvida quanto à questão do "ter de vs ter que". Pessoalmente empenho-me para que aqueles que me rodeiam usem correctamente a expressão, apesar de nem sempre conseguir bons resultados. No entanto, em minha opinião, quando o conceito é ter qualquer coisa para fazer, não se deveria usar a expressão "ter o que fazer"?. Por exemplo, se eu devo elaborar um trabalho, eu diria "tenho de fazer um trabalho", mas se eu previsse que iria ter um dia cheio, diria "tenho muito o que fazer". Será que estou incorrecta?
Desde já obrigada.

Resposta:

Obrigada pelas gentis palavras.
Ilustrou bem a diferença entre o emprego de «ter que» e «ter de». No entanto, deverá utilizar as construções «ter que fazer» ou «ter muito que fazer», sem o pronome «o», como por exemplo: «ele passa a vida a passear porque não tem que fazer»; «vamos ajudá-los, pois eles não têm que comer»; «fizeste tudo tão bem, que ele não vai ter que dizer». Nestas expressões subentende-se, antes do pronome relativo «que», uma palavra como «algo», «alguma coisa», «coisas», algo indefinido. Por vezes, é-se um pouco mais explícito acerca da quantidade desse algo: «ela tem muito que estudar», «ele não tem nada que comer», «eles têm muito que falar», «tenho tanto que fazer».
O pronome «o» não será de utilizar nestas circunstâncias, pois, antes do relativo, significa «aquilo»; é um demonstrativo, não é um indefinido. O pronome demonstrativo «o» emprega-se em expressões como as seguintes: «tenho tudo o que me pediste», «eles compreenderam bem o que quiseste dizer», «eles compram o que é bom». Ou seja, ao empregar o pronome «o» está implícito (ou, eventualmente, explícito) no discurso «aquilo» a que o emissor se está a referir; o emissor tem conhecimento desse referente: o pedido feito, aquilo que se pretendeu dizer, aquilo que é bom. O demonstrativo tem a capacidade de mostrar, de lembrar algo que já foi mencionado ou que existe na mente de alguém, e é a esse algo específico que a pessoa se refere.
Vejamos algumas situações ilustrativas:
«Sei o que dizer.»
Esta frase significa que a pessoa sabe «aquilo» que vai dizer, tem conhecimento daquele referente. Não se utilizaria, assim, a expressão «sei que dizer», pois, se a pessoa sabe o que vai dizer, não se trata de algo indefinido, é um demonstrativo, é aquilo em que ela está a pensar.
«Não sei o que di...

Pergunta:

Quando o pronome relativo for antecedido pela expressão "um dos que" o verbo fica no singular ou no plural?

Já encontrei gramáticas da língua portuguesa ( em Portugal) que afirmam que o verbo deverá ser conjugado no singular e recentemente, numa pesquisa na Internet, li, num “site” brasileiro, que tanto pode vir no singular como no plural. Gostaria de saber então como se diz correctamente.

Resposta:

Em princípio, quando se utiliza «um dos que» (= «um daqueles que»), o verbo da oração que se segue e que tem esse «que» como sujeito deve ir para a 3.ª pessoa do plural, pois o predicado concorda com o antecedente desse pronome relativo («os», «aqueles»): o pronome relativo diz respeito àqueles «os» que fizeram alguma coisa. Assim, deverá dizer-se, por exemplo, «Este cardeal foi um dos que elegeram o novo papa.»

Se antes do relativo «que» estiver um substantivo («um dos rios que», «uma das frases que», «um dos aspectos que», etc.), a regra mantém-se: «Ele apresentou um dos assuntos que mais prenderam o auditório.»

No entanto, esta regra não é absoluta. Pode pôr-se o predicado no singular em situações especiais, quando se pretende destacar o sujeito do grupo ao qual pertence. Por exemplo, se a frase se inicia pela expressão «um dos + substantivo + que», surgindo depois uma oração intercalada e só depois o predicado da oração inicial, o predicado da oração relativa intercalada vai muitas vezes para o singular: «Um dos escritores que mais me impressionou foi Padre António Vieira»; «Uma das peças que agrada sempre é Frei Luís de Sousa»; «Um dos oradores que fez uma intervenção excelente está mesmo ali.» Este singular surge por dois motivos: por uma questão de eufonia, pois o singular inicial (um) e o do predicado final levam a aceitar um singular intermédio, e por uma intenção de valorização do indivíduo em relação ao conjunto ao qual pertence.

Marcelo Rebelo de Sousa é um comentador de acontecimentos políticos, protagonista de um programa intitulado "As Escolhas de Marcelo", emitido aos domingos no primeiro canal da televisão pública portuguesa, RTP. No último domingo, dia 17 deste mês de Abril, resolveu alargar o âmbito do seu comentário e criticar erros de políticos na utilização da língua portuguesa. Mas... diz o povo, no seu entendimento de séculos, «Olha para ti e fica-te por aí» ou «No melhor pano cai a nódoa». E desta vez caiu....