Maria Regina Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

"Estado acreditante" e "Estado acreditador".

Estas expressões foram adoptadas pelo texto oficial português da Convenção de Viena de 1961 sobre relações diplomáticas, mas recentemente considerou-se que seria mais apropriado optar pelo termo "receptor" em detrimento do termo "acreditador", à semelhança da terminologia encontrada nas línguas inglesa e espanhola, respectivamente "receiving State" e "Estado receptor". Argumenta-se que o sufixo "or", sinónimo do sufixo "ante" traduziria a mesma conotação de acção. A língua francesa utiliza os termos "accréditant" e "accréditaire".

Gostaria de conhecer a vossa opinião sobre o referido argumento.

Muito obrigada pela vossa preciosa ajuda.

Resposta:

Os sufixos -dor e -tor designam o agente, a profissão, o instrumento de acção (ex.: lavrador, inspector), assim como o sufixo -ante, oriundo da terminação -nte do particípio presente latino (ex.: estudante, falante). O sufixo -or tem o sentido de estado ou qualidade expressa por substantivos (ex.: amargor, frescor), e o sufixo -ante o de acção, estado ou qualidade expressa por adjectivos (ex.: radiante, semelhante).

O termo acreditador existe na língua portuguesa no sentido de "que concilia crédito", "que dá crédito, reputação", "que abona", pelo menos desde o século XVI. O vocábulo "receptor" também é vulgar na nossa língua com o sentido de "que ou aquele que recebe", "cobrador", "aquele que aceita". A palavra "acreditante" não está dicionarizada na língua portuguesa. Assim, diga-se acreditador e receptor.

Em português existem várias formas de exprimir a mesma ideia. A sua utilização varia em função dos contextos, da época (a moda também se aplica ao uso do léxico) e do gosto pessoal dos utentes.

Grata pelas suas amáveis palavras. Ao dispor,

Pergunta:

Podia esclarecer-me melhor quanto ao tipo e características da linguagem utilizada em Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett?

Resposta:

Transcrevo um excerto da "Memória ao Conservatório Real" por meio da qual Garrett apresenta a sua obra: "O que eu escrevi em prosa, pudera escrevê-lo em verso; - e o nosso verso solto está provado que é dócil e ingénuo bastante para dar todos os efeitos de arte sem quebrar na natureza. Mas sempre havia de parecer mais artifício do que a índole especial do assunto podia sofrer. E di-lo-ei porque é verdade – repugnava-me também pôr na boca do Frei Luís de Sousa outro ritmo que não fosse o da elegante prosa portuguesa que ele, mais do que ninguém, deduziu com tanta harmonia e suavidade."

Garrett procurou a elegância, a simplicidade, a naturalidade e usou as potencialidades da língua ao serviço dos efeitos que pretendia com a sua obra:

1 – vocabulário de uso corrente, acessível a qualquer público;
2 – algumas palavras e construções antigas, contribuindo para a verosimilhança da fala das personagens: ingano, inrijar, ilha incuberta, infado, intendia, incostem-nos; quitaram-te; tão bom linhagem (masculino); tamanhinha; O teu coração e as tuas mãos estão puras. (concordância no feminino); faredes; ua; apanhar das flores; e foi quem acabou com os outros (quem persuadiu os outros, acabando com a sua relutância); bem estreado; donzela dolorida; vivirá;
3 – substantivos abstractos, adequados à revelação de sentimentos, de emoções, de valores: paz, alegria d'alma, engano, fortuna, medo, terrores, desgraça, gravidade, viveza, espírito, conselhos, ascendente, confiança, respeito, amor, carinho, formosura, bondade, devoção, lealdade, etc.;
4 – diálogos vivos, em interacção verbal constante:
a) falas curtas;
b) palavras soltas: Isso agora...; Também.; Às vezes. ; Melhor quê?; Era.; O último.; Emendá-lo.; Tontinha!; Menina!; Sabia.; Tenho.; Porquê?; Madalena!; Levaram.; Cativo?...; Sim.; Português?...; Ninguém!; Manuel.; Acordou.; Prometo.; Pesa-te?; Pesa-te....

Pergunta:

Gostaria de saber como devemos dizer: Isso pode ser evitado mantendo a casa limpa ou isso pode ser evitado mantendo-se a casa limpa? E, no caso, o que é esse se? Quando ele é obrigatório em frases desse tipo?

Tenho a mesma dúvida na frase: Olhando(-se) o animal de frente, vemos que...

Muito obrigada.

Resposta:

São duas as situações que apresenta.

Na primeira frase, pelas alternativas que me coloca, depreendo que quer utilizar uma forma passiva por meio da partícula apassivante "se", não pretendendo referir quem é que mantém a casa limpa. Assim, deverá escrever: "Isso pode ser evitado mantendo-se a casa limpa.". Se pretendesse indicar quem mantinha a casa limpa, utilizando a voz activa, deveria escrever: "Isso pode ser evitado, mantendo tu (eu, ele, nós, vós, eles, a Maria, etc.) a casa limpa."

No caso da segunda frase, não deve utilizar-se o "se", pois o sujeito do gerúndio "olhando" é o mesmo do verbo "vemos" (subentendido "nós").

Quanto à presença ou não do sujeito a acompanhar o gerúndio, há a considerar duas situações:
   1.ª - o gerúndio exprime uma circunstância de modo ou de meio ou equivale a uma oração causal, condicional, concessiva ou temporal;
   2.ª - o gerúndio tem a função de um adjectivo, podendo ser substituído por uma oração relativa adjectiva.
   1 - No primeiro caso:
   a) Se o sujeito do gerúndio e o da oração da qual ele depende forem o mesmo, basta o emprego do sujeito junto de uma das formas verbais(e pode até estar subentendido):
   Ex.: "Cantando espalharei por toda parte" (Os Lusíadas, I, 2).
   Ela gritava, pedindo ajuda.
   Vendo a situação, o menino parou.
   b) Se os sujeitos forem diferentes, é obrigatória a presença do sujeito do gerúndio ou de algum elemento que o faça subentender.
   Ex.: "E, sendo Veloso em salvamento, logo nos recolhemos para a armada" (Os Lusíadas, V, 34).
   Em caindo a noite, deves agasalhar-te.
  &...

Pergunta:

É correcto dizer-se "cada 20.000 km" no sentido de "de 20.000 em 20.000 km"?

Resposta:

Ponto prévio: em português, os números grafam-se sem pontos.

A expressão  correta é  «de 20 000 em 20 000 quilómetros».

Outras expressões do mesmo género: «de 5 em 5 metros», «de dez em dez minutos», «de quatro em quatro anos», «de hora a hora», «de tempos a tempos».

Pergunta:

Ao longo dos anos, as gramáticas normativas foram estabelecendo preceitos avaliativos, isto é, instruções que muitas vezes se resolvem em diga x, não diga y. Como você vê isto nos dias atuais?

Resposta:

Vejo como algo de imprescindível.

As gramáticas normativas exerceram no passado e exercem no presente uma função muito importante na divulgação de informação sobre a norma da língua, factor de identidade e cultura de um povo.

Não esqueço que a língua é um organismo vivo e em evolução. Mas as gramáticas (também as normativas) vão incorporando essa evolução. Também não esqueço que nas gramáticas normativas se apresenta um conjunto de regras aceites por um grupo socioculturalmente dominante e que podem considerar-se como "impostas" aos restantes grupos de falantes. Mas também existem hoje diversas gramáticas que fazem a descrição da variedade de ocorrências da língua.

Os falantes têm a liberdade de se afastar dessa norma dominante, cara consulente, mas, porque a língua não é um património individual mas social, colectivo, é nas gramáticas normativas que se pode encontrar a norma linguística cujo domínio é desejado pela generalidade dos falantes de qualquer comunidade.