Maria Regina Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Um jornalista que conheço insiste que «a palavra revolução significa isso mesmo: uma volta de 360 graus, isto é, algo que gira, mas volta ao mesmo ponto, logo, para ficar igual». Perdoem-me a ignorância, mas não vejo alguém revoltado ou em revolução que pretenda voltar à mesma situação.
Sou da opinião que, como consta aqui, existe sentido mais adequado à palavra revolução, quando se refere a um conjunto de pessoas que pretendem, por exemplo, uma «reforma, transformação, mudança completa». A tal pessoa jornalista responde que «esses significados são espúrios: o único significado de revolução, com propriedade de linguagem, é o original... tudo o resto é conveniência linguística».

Perdoem-me por não ter expressões tão caras como «espúrios», «propriedade de linguagem» ou «conveniência linguística», mas... gostava de esclarecer esta dúvida, pois pretendo aprender sem ficar na ignorância. É possível uma explicação da vossa parte? Ou trata-se de uma situação em que a pessoa apenas tem o objectivo de "ganhar" a argumentação?

Resposta:

A palavra revolução, como muitas outras, pode ser utilizada em diversos contextos, com diferentes significados.

Em certos contextos científicos (por exemplo, na área da astronomia ou da mecânica), ela é, efetivamente, utilizada nessa aceção de algo que volta ao ponto de partida: em astronomia, designa o movimento completo que um corpo celeste executa ao percorrer a sua órbita em torno de outro ou em volta do centro de gravidade do sistema; em mecânica, significa o giro completo de uma roda, do eixo de um motor ou de qualquer peça giratória.

No entanto, como é óbvio, o facto de algo voltar ao ponto de partida não significa que «fique igual».

Isto, em contextos de natureza científica. No entanto, a palavra tem outras aceções, já presentes no latim, de onde é originária (revolutio, revolutionis), e que passaram, naturalmente, para o português, ou que adquiriu ao longo dos tempos.

Assim, em latim, a palavra designava a passagem sucessiva de um corpo a outro e o volver do tempo. Quer numa aceção quer na outra, estava presente a noção de alteração, de mudança.

O sentido moderno de revolução como «sublevação» ou «revolta» (já registado em dicionários portugueses no século XIX) vem-nos do francês révolution.

Em suma, as palavras são muitas vezes polissémicas, não são propriedade exclusiva de determinadas áreas do saber e vão adquirindo significações novas e legítimas ao longo dos tempos.

Pergunta:

Será que este porco tinha uma perna a mais, a extra, de onde se tirou o fiambre? Será alguma raça de porcos que eu não conheço? Serão porcos transgénicos? Recentemente passou na televisão um anúncio sobre este tipo de fiambre em que explicavam os cuidados extra que tinham com a produção deste fiambre, obtendo-se assim um produto de qualidade superior a que chamaram «fiambre extra». Fiquei muito mais descansada por saber que extra era a qualidade do fiambre e não a perna do porco, porque, da forma como é dito, imagens de porcos com cinco pernas surgem imediatamente na minha imaginação… e não são imagens bonitas! Qual é então a forma correcta: «fiambre da perna extra», ou «fiambre extra da perna»?

Resposta:

A expressão correta é «fiambre da perna extra».

Embora haja no mercado fiambre de aves, quando se fala de fiambre, em geral, pretende-se referir um produto alimentar preparado a partir de carne de porco submetida a diversos tratamentos. Ora, existem dois tipos deste fiambre: o fiambre da perna (feito a partir da carne das patas traseiras do porco) e o fiambre da pá (proveniente das patas dianteiras). Qualquer deles pode apresentar uma qualidade média e uma qualidade superior, isto é, pode ser corrente ou extra. A palavra extra aqui é um adjetivo que não significa «suplementar», mas, sim, «extraordinário» e, que, naturalmente, diz respeito ao fiambre, e não à parte do corpo do animal com a qual o fiambre foi feito.

Assim, qualquer dos termos compostos que designa o fiambre (fiambre da pá ou fiambre da perna) pode ser adjetivado por estes ou outros vocábulos: «fiambre da perna extra», «fiambre da pá corrente», «fiambre da perna fatiado», «fiambre da pá finíssimo». O adjetivo extra é uniforme (isto é, tem a mesma forma para o masculino e para o feminino), pelo que poderá prestar-se a esta confusão (por brincadeira), mas, se se utilizarem os adjetivos fino ou fatiado, já o problema desaparece.

Exemplos de outros termos com construção idêntica: «pés de galinha visíveis», «fim de semana extraordinário», «sala de visitas arrumada», «casa de banho inundada».

Pergunta:

Na frase «Não nos deram as chaves», como faço a substituição por pronomes pessoais?

Não consigo perceber, embora conheça os casos de próclise, mesóclise, ênclise...

Obrigada.

Resposta:

Se se substituir o complemento direto («as chaves») pelo pronome pessoal, obtém-se a seguinte frase: «Não no-las deram.» O pronome pessoal as corresponde ao termo «as chaves». Como ficam a existir na frase dois complementos constituídos por pronomes (nos – complemento indireto; as – complemento direto), utiliza-se primeiro o indireto (nos) e, depois, o direto (as).

Exemplos:

«Não me fizeram nenhum favor.» = «Não mo fizeram.»

«Não te deram a pasta.» = «Não ta deram.»

«Não lhe entregaram o trabalho.» = «Não lho entregaram.»

«Não nos emprestaram o carro.» = «Não no-lo emprestaram.»

«Não vos disseram a verdade.» = «Não vo-la disseram.»

«Não lhes abriram a porta.» = «Não lha abriram.»

Observe-se que, no caso dos pronomes nos e vos, o s final desaparece, assumindo o pronome pessoal (o, a, os, as) a forma lo, la, los, las.

Exemplos:

«Não nos mostraram o apartamento.» = «Não no-lo mostraram.»

«Não nos mostraram a varanda.» = «Não no-la mostraram.»

«Não nos mostraram os documentos.» = «Não no-los mostraram.»

«Não nos mostraram as fotografias.» = «Não no-las mostraram.»

Pergunta:

Qual a melhor forma: «Criar-se a si mesmo», ou «criar a si mesmo»? Ambas são válidas?

Amigos meus defendem a segunda opção, dizendo que o pronome após o infinito – como está na primeira opção – é dispensável. É verdade?

Resposta:

Só a primeira construção está correta: «Criar-se a si mesmo.»

O verbo criar usado pronominalmente (criar-se) e com o termo «a si mesmo» significa originar-se, desenvolver-se, educar-se.

Se se pretender dizer, por exemplo, que uma pessoa cresceu em Coimbra, poderá usar-se a frase «Ele criou-se em Coimbra», mas não *«Ele criou em Coimbra».

A segunda frase exigiria um complemento direto: por exemplo, «Ele criou muitas amizades em Coimbra».

A construção «criar-se a si mesmo» é usada, por exemplo, nas seguintes frases:

«Não sei se o Universo se criou a si mesmo.»

«Como pintor, ele criou-se a si mesmo, sem ajuda de ninguém.»

«Tornar-se independente, criando-se a si mesmo, não é tarefa fácil.»

Pergunta:

Li o seguinte título no Jornal de Notícias: «Eles não sabiam que vão ser mudados.»

Gostaria de saber se a frase está correcta.

Grata pela vossa atenção.

Resposta:

A frase não está correta, não. São de assinalar duas incorreções.

1.ª – O verbo ir está no presente do indicativo («vão»), mas devia estar no pretérito imperfeito do indicativo («iam»), em correspondência com a forma verbal «sabiam», que está precisamente no pretérito imperfeito do indicativo.

2.ª – O verbo mudar na voz passiva («ser mudado») normalmente não se aplica a pessoas mas a objetos, móveis, animais, etc., isto é, elementos sem vontade própria, que podem ser «mudados» (deslocados, dispostos de outro modo) por alguém (exemplo: «A estante foi mudada da sala para o corredor»).

Como não foi enviado o texto, não sei que sentido se pretendia atribuir ao verbo mudar. No entanto, uma frase correta seria a seguinte: «Eles não sabiam que iam ser transferidos.»