Maria João Matos - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Maria João Matos
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Maria João Matos, professora de Português do ensino secundário, licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

É muito normal ouvir um tempo verbal que me deixa sérias dúvidas.

Frequentemente em relatos de futebol (mas o "fenómeno" tem vindo a espalhar-se...), ouve-se «se ele tem acertado», «se ele tem passado», etc., em vez do que me parece mais correcto «se ele acertasse», «se ele passasse» ou ainda «se tivesse acertado» ou «se tivesse passado». Pois sempre tive a ideia de que dizer «se tem passado» implica uma ideia de continuidade no tempo.

É correcto usar «se o jogador tem acertado na baliza» (sem existir a tal noção de continuidade em vez de «se o jogador tivesse acertado» ou «se o jogador acertasse» (naquele preciso momento)?

Obrigado!

Resposta:

As gramáticas actuais que conheço não abrigam a construção da oração condicional com o modo indicativo. Mas esta construção, de cariz popular, é atestada por algumas gramáticas mais antigas, como pode ver numa resposta anterior, para a qual o remetemos.

É uma construção que se ouve com relativa frequência, embora seja de evitar na linguagem corrente, própria, por exemplo, dos órgãos de comunicação. Tratando-se de um relato de futebol, parece-me aceitável, dado que a linguagem deve acompanhar o ritmo e o entusiasmo do movimento da bola, exigindo um discurso natural e expressivo, que, em minha opinião, este tipo de construção ajuda a produzir.

Pergunta:

Não consigo encontrar o significado da palavra pica-chouriço (procurei nos dicionários: de Porto Editora, Aurélio, Lello) que apareceu no livro que estou a traduzir.

Ser-lhes-ia obrigada pela ajuda.

Resposta:

Pica-chouriços era a alcunha dada antigamente pelo povo aos guardas que faziam a fiscalização dos bens que entravam pelas portas das grandes cidades, como Lisboa e Porto, e que estavam sujeitos ao pagamento de um imposto. Esse trabalho era feito com o auxílio de um ferro comprido e fino, espetado nas cargas, e que permitia detectar pelo cheiro, quando retirado, a existência de enchidos ou outros bens de consumo. É essa ferramenta que está na origem do nome pica-chouriços, dado aos guardas que a usavam. A função do pica-chouriços já não existe há muitos anos, a Guarda-Fiscal também já foi extinta, mas o termo não foi esquecido. 

Sugerimos, sobre esta palavra, a leitura do artigo da Revista da Guarda, da GNR, edição n.º 4/2004, intitulado O porquê dos pica-chouriços, da autoria do sargento-chefe José Botelheiro.

Pergunta:

Minha pergunta já foi feita aqui uma vez antes por um outro consulente, mas permaneço em dúvida a respeito do assunto:

Afinal, quando alguém diz que tem cíumes de outra pessoa, pode ser tanto de um indivíduo cujo lugar você gostaria de tomar (ou seja, uma inveja) quanto um zelo exagerado por alguém que se gosta? Ou apenas um dos dois? Em inglês, se não estou enganado, usa-se a palavra jealous e é sempre referindo-se à pessoa que se inveja, nunca a pessoa que você tem medo de perder. Em português, no entanto, sinto uma tendência maior a se dizer que se tem ciúmes da pessoa pela qual se tem muito zelo (como a música de Roberto Carlos Ciúme de Você)

Afinal, qual seria o mais correto? Ou ambos são aceitáveis?

Resposta:

O ciúme é, de uma forma geral, um sentimento negativo manifestado pelo receio de se perder o afecto de uma pessoa, em favor de outra. A pessoa que receia que o afecto lhe seja roubado tem ciúmes da que poderá beneficiar dele. Os animais, tal como as pessoas, também sofrem de ciúmes, quer em relação às pessoas, quer a outros animais. Os ciúmes podem ser justificados ou podem ser infundados, podendo tornar-se doentios. Neste contexto, não seria correcto utilizar o termo inveja.

A inveja é o «desejo de possuir algo que outra pessoa possui ou de usufruir de uma situação semelhante à de outrem». É sinónimo de cobiça. Quem inveja… inveja outras pessoas, pelos bens materiais, pelo sucesso, pelo facto de serem felizes, etc.

Digamos que a pessoa que tem ciúmes «ama» aquela que o leva a ter ciúmes, a pessoa que inveja «odeia» a pessoa que é alvo da sua inveja.

O termo ciúme vem do latim zelumen, zeluminis, que deriva de zelus, zeli e significa «ciúme amoroso, desejo». O termo inveja provém do latim invidia, invidiae, de invidus, invida, invidum, «que tem ou lança mau-olhado, que tem inveja, invejoso», de invidere, «olhar de modo malévolo, lançar mau-olhado, donde invejar» (cf. Dicionário Houaiss).

Por vezes, ciúme é sinónimo de inveja: «Ficou com ciúmes por teres sido promovido.» A pessoa tem ciúmes por ter sido relegada para segundo plano ...

Pergunta:

Eu tenho uma dúvida sobre o uso do verbo «acabar de» para localizar a ocorrência de factos no tempo. Na imprensa aparecem frases como:

a) «Gisele Bündchen acaba de chegar ao Brasil, para curtir o Carnaval.»

b) «PR acaba de chegar à ilha da Madeira.»

c) «Madonna acaba de chegar no Hotel Fasano, no Rio de Janeiro!»

Se se trocasse «acaba de» por «acabou de», as frases acima teriam o mesmo sentido quanto ao “tempo” de ocorrência dos factos. Qual é a diferença entre o uso do presente e pretérito nestes casos?

Resposta:

A conjugação perifrástica com o verbo auxiliar acabar (de) indica, por norma, o final da acção. Traduz também uma acção pontual, que dura apenas um instante. Assim, é legítimo usar o pretérito perfeito (acabou de chegar), uma vez que o momento da chegada se torna de imediato passado. Com o uso do presente (acaba de chegar), o que se consegue é sugerir uma maior proximidade ao acontecimento, uma maior actualidade, como deve ser atributo da notícia jornalística.

Pergunta:

É de afirmar que existe pleonasmo na frase seguinte?

«Este mentalizou cuidadosamente a direção do corte a ser feito, pois dele procedia tudo o que viria depois.»

Obrigado.

Resposta:

Se atentarmos no significado do verbo proceder (vir, provir), verificamos que há a repetição de uma ideia (viria) já contida numa palavra anterior (procedia). Seria como se disséssemos: «[…] dele vinha (provinha) tudo o que viria depois.» Tal redundância de termos torna a frase confusa, pelo menos no português de Portugal. Na minha opinião, faria mais sentido se, em vez de proceder, se utilizasse o verbo depender:

«Este mentalizou cuidadosamente a direcção do corte a ser feito, pois dele dependia tudo o que viria depois.»