Inês Gama - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Inês Gama
Inês Gama
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Licenciada em Português com Menor em Línguas Modernas – Inglês pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre em Português como Língua Estrangeira e Língua Segunda (PLELS) pela mesma instituição. Fez um estágio em ensino de português como língua estrangeira na Universidade Jaguelónica em Cracóvia (Polónia). Exerce funções de apoio à edição/revisão do Ciberdúvidas e à reorganização do seu acervo.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Atualmente, venho verificando que, possivelmente pela influência do inglês, se usa muito a 2.ª pessoa do singular em situações em que se devia usar a 1.ª pessoa do plural, por exemplo:

«Ao longo da vida, és muito condicionado pela tua família...», em vez de «Ao longo da vida, somos muito condicionados pela nossa família...»

Será correta esta utilização da 2.ª pessoa?

Obrigada.

Resposta:

Sim, na situação indicada pela consulente é correta a utilização da 2.ª pessoa do singular.

De acordo com Eduardo Paiva Raposo na Gramática do Português (página 908), os pronomes pessoais de segunda pessoa do singular, como é o caso de tu (incluindo a versão nula), «podem receber uma leitura semelhante a uma interpretação genérica, na qual o ouvinte da frase é implicitamente incluído num grupo que representa as pessoas em geral». Por seu lado, o pronome da 1ª pessoa do plural, nós, não refere uma pluralidade de falantes, mas sim um grupo que inclui o falante e outras pessoas; ou seja, nós corresponde ou a ‘eu + tu/você(s)’ ou a ‘eu + ele(s)’.

Deste modo, analisando as situações exemplificadas pela consulente, conclui-se que ambas as frases estão corretas, mas transmitem informações diferentes. Enquanto em «Ao longo da vida, és muito condicionado pela tua família…» pode-se inferir uma interpretação genérica ou que se dirige a apenas um interlocutor (mesmo que simulado), em «Ao longo da vida, somos muito condicionados pela nossa família…», o uso da 1.ª pessoa do plural interpreta-se como referência a um grupo específico, mas que pode ser alargado (por exemplo: nós, os portugueses).

Os verbos impessoais no ensino de Português <br> como Língua Estrangeira
O que estará por detrás do erro «você chove»?

«Há uns tempos, deparei-me com a expressão «você chove», que me levou a refletir sobre a forma como os verbos impessoais são abordados nas aulas de PLE. Afinal, tinha um aluno na sala que assumia o pronome você como sendo expletivo e que verbos impessoais (como chover) têm sujeito gramatical.» 

Artigo da professora portuguesa  Inês Gama sobre o ensino de pronomes pessoais e dos verbos impessoais em português como língua estrangeira (PLE).

A que classe de palavras pertence <i>muito</i>?
Uma palavra que pode pertencer a várias classes

Nas frases «Este livro é muito interessante» e «Ao ler o livro fiquei com muito medo», a que classe de palavras pertence a palavra muito? Esta é a questão que funciona como ponto de partida para a dúvida da semana, apontamento de Inês Gama no programa Páginas de Português da Antena 2, em 11 de dezembro de 2022.

Pergunta:

Eu gostaria se saber se há alguma diferença semântica entre a palavra diálogo e conversa.

Os meus mais sinceros agradecimentos.

Muito obrigado!

Resposta:

Do ponto de vista semântico, diálogo e conversa são geralmente vocábulos sinónimos quando apresentam o sentido de troca de palavras entre duas ou mais pessoas.

Segundo o dicionário em linha Infopédia, diálogo significa «conversa entre duas pessoas; troca de ideias ou opiniões com o propósito de chegar a um entendimento». Quanto a conversa, tem o sentido de «troca de palavras; assunto sobre o qual se fala» (Infopédia). No fundo, com base nos sentidos apresentados, pode-se depreender que estas palavras têm usos equivalentes quando referem a troca verbal entre pessoas.

Porém, no plano literário e linguístico, de acordo com E-Dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia, o diálogo é entendido como «uma forma de discurso e modo de expressão literária em que dois interlocutores (o “eu” e o “tu”) se alternam reversivelmente, interagindo na comunicação, discussão e troca de ideias, informações, sentimentos, pensamentos e atitudes»1. Portanto, no âmbito da análise de texto, o termo que se usa é diálogo, e não conversa.

 

1 No Dicionário Terminológico, podem encontrar-se outros esclarecimentos sobre o uso de diálogo nos estudos linguísticos e literários: [...] Género literário e filosófico-literário que representa diversos interlocutores, com orientações espirituais, filosóficas, morais, ideológicas, esté...

Pergunta:

As seguintes frases estão ambas certas, ou apenas a primeira?

«Os funcionários foram simpáticos, como não podiam deixar de ser.»

«Os funcionários foram simpáticos, como não podia deixar de ser.»

A primeira frase é de Mário Gonçalves Viana, no seu A Arte de Redigir, de 1951. Porém, em frases desse tipo eu costumo usar o verbo poder no singular. Está errado?

Muito obrigado.

Resposta:

Ambas as frases podem ser aceites em português, contudo a interpretação da primeira frase, «Os funcionários foram simpáticos, como não podiam deixar de ser», é diferente da segunda, «Os funcionários foram simpáticos, como não podia deixar de ser».

Em «Os funcionários foram simpáticos, como não podiam deixar de ser», o verbo poder concorda em número com o sujeito da primeira oração, o sintagma nominal (SN) «os funcionários», o que indica que, neste caso, o sujeito da primeira oração é o mesmo da segunda. Por conseguinte, entende-se que a informação veiculada por esta frase destaca os funcionários, sempre afáveis ou prontos a satisfazerem a obrigação de o serem.

Já em «Os funcionários foram simpáticos, como não podia deixar de ser», o verbo poder encontra-se flexionado na terceira pessoa do singular e não concorda em número com o sujeito da primeira oração. Isto indica que, nesta situação, o sujeito da segunda oração não é o mesmo da primeira, ou seja, enquanto na primeira oração o sujeito é o SN «os funcionários», por desencadear concordância em pessoa e número com o verbo ser, na segundo oração o sujeito é toda a primeira oração, «os funcionários foram simpáticos», o que desencadeia concordância verbal na terceira pessoa do singular. Sobre isto, Eduardo Paiva Raposo assinala na Gramática do Português que «nas orações, de facto, não existe um núcleo nominal ou pronominal que possa ser fonte de um traço de número para a concordância. Logo, o verbo assume automaticamente a flexão morfológica singular, quer o sujeito oracional seja simples, quer seja composto» (pág. 24481). Por isso, o sentido desta frase salienta globalmente o facto de ser comum os empregados serem simpáticos.

 

1. Raposo, E. P. (2021), Concordância Verbal. In Raposo...