Inês Gama - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Inês Gama
Inês Gama
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Licenciada em Português com Menor em Línguas Modernas – Inglês pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre em Português como Língua Estrangeira e Língua Segunda (PLELS) pela mesma instituição. Fez um estágio em ensino de português como língua estrangeira na Universidade Jaguelónica em Cracóvia (Polónia). Exerce funções de apoio à edição/revisão do Ciberdúvidas e à reorganização do seu acervo.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase: «O homem passou de professor a diretor.»

1. Qual a função sintática do termo «de professor»?

2. Qual a função sintática do termo «a diretor»?

3. Qual a transitividade do verbo passou?

Obrigado.

Resposta:

Os constituintes professor e diretor têm, na frase apresentada, a função sintática de predicativo do sujeito.

Segundo Celso Luft, em Dicionário prático de regência verbal (Ed. Ática), o verbo passar usado no sentido de «mudar de atitude ou comportamento, de estado ou condição» (pág. 393) rege a preposição de seguida por um constituinte com a função de predicativo mais a preposição a seguida por um outro constituinte também com a função de predicativo.

Note-se que o verbo passar não pertence ao grupo restrito dos verbos copulativos em português, responsáveis pela seleção de um predicativo do sujeito, mas, no caso da frase apresentada, este verbo apresenta propriedades idênticas à dos verbos copulativos, na medida em que predica algo acerca do sujeito.

Observe-se que é possível substituir o predicado da frase apresentada por duas orações coordenadas copulativas, como se verifica em (1), comprovando, assim, a função de predicativo do sujeito de professor e diretor.

(1)    O homem era professor e tornou-se diretor.

Pergunta:

Recentemente e graças a um dos contactos em minha rede social, eu aprendi a existência da palavra énantiosème e o seu significado – uma palavra que pode significar algo e o seu contrário, como, em francês, apprendre e hôte. De pronto, parti em busca de exemplos na língua portuguesa, mas eu não os encontrei; não encontrei nem mesmo registos para a sua tradução enantiossema.

Poderiam, se faz favor, partilhar algum conhecimento sobre este assunto?

Desde já, agradeço a atenção e também a permanência deste interessante e rico repositório de conhecimentos sobre a língua portuguesa.

Resposta:

Agradecemos, antes de mais, as suas palavras de apreço pelo trabalho que desenvolvemos.

É perfeitamente aceitável traduzir a palavra énantiosème para a forma portuguesa enantiossema, que resulta da junção do radical enantio-, que exprime a ideia de oposição, à palavra sema, que designa a unidade mínima de significação de uma palavra. Embora o termo enantiossema não tenha entrada nos dicionários consultados, assinale-se que, no artigo correspondente à entrada enantio- no Dicionário Houaiss, figuram os termos enantossemia e enantossémico, os quais partilham os mesmos radicais da palavra enantiossema e que a legitimam.

Énantiosème é um termo francês cuja definição, curiosamente, se encontra ausente de importantes dicionários franceses em linha, como por exemplo, Le Robert, Larousse e Le Dictionnaire. A sua definição surge apenas em alguns sítios da Internet, como La langue française. Isto poderá sugerir que tal vocábulo ainda não se encontra difundido por uma parte significativa dos...

As palavras de 2023 no Ciberdúvidas

As palavras que, ao longo do ano de 2023, foram usadas para referir os momentos mais marcantes são o tema deste texto, da consultora Inês Gama, que faz um levantamento dos vocábulos que o Ciberdúvidas identificou e analisou ao longo dos últimos 12 meses.

Pergunta:

Primeiro, muito obrigado pelo apoio e atenção de sempre. Serei eternamente grato pela solicitude.

Minha dúvida é sobre um possível significado do verbo ocorrer para o qual não encontrei descrição nos dicionários consultados. Pois bem, lendo um álbum produzido na década de 80, sobre animais da Mata Atlântica, volta e meia, me deparo com o referido verbo indicando o habitat de determinado animal, como no fragmento que transcrevo abaixo:

«[...] Esta ave ocorre desde a Bahia, passando por Minas Gerais e descendo até o Rio Grande do Sul […].»

Acredito que tenha uma acepção quase de «viver, habitar», pelo contexto, porém não vi registro nas entradas deste verbo nas fontes consultadas.

Daí, por gentileza, peço ajuda. É de conhecimento de vocês se esse verbo é utilizado com proximidade destes significados que presumi?

Resposta:

Primeiro, agradecemos as gentis palavras, que muito nos satisfazem.

Na frase indicada, o verbo ocorrer tem o sentido de «ter lugar, existir», ou seja, pretende indicar que a ave pode existir numa área cuja extensão tem início na Bahia, passa por Minas Gerais e termina no Rio Grande do Sul. Portanto, está correto o seu uso com a aceção de «viver, habitar determinada região».

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa (DLPACL), um dos possíveis sentidos do verbo ocorrer é «existir ou aparecer num lugar, num contexto, numa situação», como por exemplo em «Esta doença ocorre sobretudo nos grupos de maior risco». Contudo, assinala-se que dos dicionários consultados para a elaboração desta resposta (cf. Infopédia, PriberamMichaelis e Aulete), apenas o DLPACL apresenta esta aceção para o verbo ocorrer.

Portanto, tendo em consideração o significado de ocorrer indicado anteriormente, poder-se-á considerar que na frase «Esta ave ocorre desde a Bahia, passando por Minas Gerais e descendo até ao Rio Grande do Sul» a informação veiculada é de que a ave em questão habita a área compreendida entre estes estados, uma vez que é nessa área em que se pode encontrá-...

Pergunta:

Pode dizer-se que uma conjunção como, por exemplo, embora seleciona o conjuntivo ou o verbo selecionar, nesse sentido, só se usa relativamente a verbos, por exemplo, o verbo obedecer seleciona complemento indireto?

Muito obrigado!

Resposta:

Geralmente, em português, usa-se o conjuntivo (subjuntivo, na nomenclatura brasileira) com a conjunção embora. Isto acontece porque embora introduz uma oração subordinada concessiva, como se pode verificar em (1):

(1)    Embora esteja a chover, o dia está agradável.

De acordo com Rui Marques, na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian), «uma possível razão para que não seja o indicativo o modo selecionado prende-se com o contraste que este tipo de construção expressa: a oração principal descreve uma situação que não se esperaria que ocorresse quando se verifica a que é descrita pela oração subordinada concessiva» (página 683). Portanto, a seleção do modo conjuntivo e indicativo é sobretudo vista como uma estratégia da língua para focalizar a oração que veicula informação inesperada.

A seleção do modo está sobretudo dependente do contexto da informação veiculada por uma determinada oração, nomeadamente, o seu valor de verdade. Embora possa ocorrer em frases simples, como (2), o conjuntivo é por excelência o modo das orações subordinadas, sendo, portanto, selecionado por conjunções, como é o caso de embora e de se