Inês Gama - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Inês Gama
Inês Gama
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Licenciada em Português com Menor em Línguas Modernas – Inglês pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre em Português como Língua Estrangeira e Língua Segunda (PLELS) pela mesma instituição. Fez um estágio em ensino de português como língua estrangeira na Universidade Jaguelónica em Cracóvia (Polónia). Exerce funções de apoio à edição/revisão do Ciberdúvidas e à reorganização do seu acervo.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Os parabéns ao Ciberdúvidas pela ajuda preciosa e única que dá a quem usa a língua como instrumento.

A expressão «dar conta de», que no dicionário da Porto Ed. aparece com o significado de «aperceber-se, descobrir» e «responder por; dar explicações», é muitas vezes usada com o sentido de relatar, contar; por exemplo, julgo que é o sentido na frase: «notícias que nos davam conta dos ataques aéreos dos invasores» ou «o relatório dá conta dos casos tratados no hospital». Ora, apesar de muito usada neste sentido, não parece estar correto este significado, de acordo com a definição citada.

Peço uma explicação da expressão e do seu significado, com e sem pronome pessoal (dar conta de e dar-se conta de) (se o seu uso fizer diferença).

Muito obrigada.

Resposta:

De facto, o Dicionário da Porto Editora em linha (Infopédia) apenas apresenta para a expressão «dar conta de» a aceção de «responder por». Contudo, pesquisando noutros dicionários, como, por exemplo, o Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa (DLPACL), é possível identificar como sentidos desta expressão «informar alguém sobre alguma coisa», como em (1), ou «conseguir desempenhar com sucesso; conseguir desembaraçar-se», como em (2).

(1) «A Joana deu conta dos resultados do relatório ao júri.»

(2) «Apesar do elevado trabalho, o António deu conta do recado.»

Por conseguinte, tendo em conta os significados desta expressão atestados no DLPACL, é possível considerar que o segmento de frase, em (3), e a frase, em (4), apresentados pela consulente, estão corretos, na medida em que a expressão «dar conta de» é aqui utilizada no seu sentido de informar.

(3) «[…] notícias que nos davam conta dos ataques aéreos dos invasores […]»

(4) «O relatório dá conta dos casos tratados no hospital.»

Quanto à utilização desta expressão com o pronome reflexo, «dar-se conta de», os seus sentidos são um pouco diferentes dos atribuídos à expressão «dar conta de». Tanto a Infopédia como o DLPACL apresentam como possíveis significados de «dar-se conta de»: «aperceber-se de», notar ou «dar por isso», como exemplificado na frase (5).

<i>«Duelo a três»</i>
Como se deve designar um combate a três?

Em Portugal, em alguns noticiários televisivos, artigos de jornais e espaços de comentário, usou-se a expressão «duelo a três», para descrever o debate que teve lugar entre os três maiores partidos do parlamento. Esta descrição não passou ao lado dos comentadores do Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer, transmitido na SIC Notícias, em 12 de abril de 2024. Nele o moderador/apresentador, Carlos Vaz Marques, questiona o Ciberdúvidas sobre se tal expressão estaria correta e qual seria a melhor forma de, em português, designar um combate a três? Neste apontamento, a consultora Inês Gama tenta dar resposta a essa questão.

Pergunta:

Em inglês, o útil termo misnomer designa «um nome que é aplicado incorretamente ou inadequadamente», como por exemplo panda-vermelho (que não é panda, nem sequer da família dos ursos). Será considerável como um tipo de solecismo?

Qual seria um bom equivalente para esta palavra em português? "Erronome"/"erronímico" (e daí "erronomia")? "Irracionome"/"irracionímico" ("irracionomia")?

Resposta:

Segundo o Oxford Learner’s Dictionaries, a palavra misnomer significa «a name or a word that is not appropriate or accurate1». Também o Cambridge Dictionary apresenta como aceção de misnomer «a name that does not suit what it refers to, or the use of such a name2». Neste sentido, as situações descritas por este termo estão sobretudo relacionadas com incompatibilidades semânticas, não sendo, portanto, o mais apropriado considerar que se trata de um solecismo.

Note-se que um solecismo é uma inadequação na estrutura sintática de uma frase que é contrária à norma-padrão. Um exemplo típico, em português, de um solecismo é uma construção como «Haviam muitos chocolates na caixa», uma vez que o verbo haver, com o sentido de existir, é impessoal e flexiona apenas na terceira pessoa do singular, sendo o correto «Havia muitos chocolates na caixa».

Consultando alguns dicionários bilingues de inglês-português, como, por exemplo, a Infopédia, encontra-se como equivalente, em português, de misnomer as expressões «nome errado», «nome impróprio», «erro de nome» ou ainda «emprego errado dum nome ou designação».  

Quanto às sugestões do consulente sobre palavras que, em português, seriam o equivalente de misnomer, nenhuma delas se encontra dicionarizada, considerando-se, portanto, que não existem. Contudo, não será de excluir a possibilidade de surgir, num futuro próximo, na língua portuguesa um único termo, tal como existe em inglês.

 

1. Tradução Livre: «um nome ou uma palavra que n...

<i>Revoluções</i> e <i>revoltas</i>
A semântica por detrás destes termos

«Uma revolução acaba sempre por ter uma amplitude maior do que a de uma revolta, mesmo que a segunda tenha sido ponto de partida da primeira.»  sublinha a consultora Inês Gama, neste apontamento em que se analisam as subtis diferenças semânticas entre revolução e revolta.

Pergunta:

Sabemos que os pronomes relativos devem ser procedidos pela regência dos verbos que os seguem. No entanto, não é uma prática que percebo na oralidade.

É frequente ouvir:

Li o livro que me falaste.

Em vez de: Li o livro de que me falaste.

Aprendi a música que gosto.

Em vez de: Aprendi a música de que gosto.

Gostaria de saber o que as gramáticas dizem sobre isto e a vossa opinião. Devemos considerar agramatical?

Obrigada!

Resposta:

Nestes casos, a aceitabilidade da supressão da preposição em orações relativas varia consoante os verbos utilizados. Por exemplo, João Andrade Peres e Telmo Móia, em Áreas Críticas da Língua Portuguesa, assinalam que «o verbo gostar parece ser um dos favoritos dos adeptos da construção [sem preposição]» (pág. 289).

Adotando um ponto de vista mais conservador e preferencial para muitos autores e gramáticas, o correto é o pronome relativo ser precedido pela preposição de quando o verbo da oração relativa rege essa mesma preposição, uma vez que, quando o pronome relativo é deslocado para o início da oração, a preposição deve acompanhar este elemento na deslocação. Neste sentido, apenas são aceitáveis frases como «Li o livro de que me falaste» ou «Aprendi a música de que gosto».

Contudo, como assinala a consulente, os falantes dividem-se quanto à necessidade do uso da preposição neste tipo de situações, sendo comum, sobretudo em registos orais e alguns escritos, a omissão da preposição nas construções relativas. Segundo João Andrade Peres e Telmo Móia, em Áreas Críticas da Língua Portuguesa, a supressão da preposição em orações relativas consiste num fenómeno que «está progressivamente a ganhar terreno, possivelmente por influência do português do Brasil» (pág. 288). Também não é de excluir influência do inglês nestes casos, uma vez que nesta língua ocorre o «abandono de preposição» quando o pronome relativo sofre um movimento.

Portanto, alguns autores e gramáticas dão conta da possibi...