Gonçalo Neves - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Gonçalo Neves
Gonçalo Neves
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Tradutor de espanhol, francês, inglês, italiano e latim; especialista em Interlinguística, com obra publicada (poesia, contos, estudos linguísticos) em três línguas planeadas (ido, esperanto, interlíngua) em várias revistas estrangeiras; foi professor de Espanhol (curso de tradução) e Português para Estrangeiros no Instituto Espanhol de Línguas; trabalhou como lexicógrafo na Texto Editores; licenciado em fitopatologia pela Universidade Técnica de Lisboa.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A resposta do Ciberdúvidas, dada por D´Silvas Filho, não esclarece por que razão o vocábulo ontem já se escreveu com h: “hontem”. É uma questão que também nunca consegui apurar. Terá sido por analogia com hoje ou com a palavra latina heri que significa «ontem»? No Diccionario da Lingua Portugueza de Antonio de Moraes Silva (8.ª edição, Volume II, 1891), a entrada ontem remete-nos para “hontem”, dando alguns exemplos: «desde hontem», «até hontem», «para hontem», «hontem foi dia sancto». Também na palavra erva, o mesmo dicionário nos remete para herva.

Mas neste vocábulo pode perceber-se a grafia com h através do seu étimo latino: herba. Do mesmo modo se podem compreender as grafias de húmido (português europeu) e úmido (português do Brasil), pois em latim existem as duas grafias: umidus e humidus. Alguns dicionários de latim referem que o h de é adventício, foi acrescentado a umidus por uma falsa aproximação com o vocábulo humus («terra»). Mas com o vocábulo ontem, que veio do latim ad noctem, não se percebe a ortografia “hontem”…

Resposta:

Quando se referiam ao dia imediatamente anterior àquele em que estavam, os romanos serviam-se da expressão hesterno die ou, mais frequentemente, do advérbio heri. Este último vocábulo pode considerar-se um verdadeiro “caso de sucesso”, pois deu origem, entre outros, a ayer em castelhano, ahir em catalão, ayeri em asturiano (todos eles através da locução ad heri), ieri em italiano e em romeno, ièr em occitano, hier em francês (do qual provém hieraŭ em esperanto) e eire em galego-português (com a variante eiri, que encontramos nos versos iniciais desta cantiga de escárnio e maldizer, cuja versão integral se pode ler aqui): 

«Dom Estêvam, eu eiri comi

em cas del-rei, nunca vistes melhor,» 

Estranhamente, heri não deixou qualquer vestígio em português moderno, tendo eire e eiri sido substituídos por ontem, vocábulo que só encontra paralelo em galego e mirandês, línguas em que o advérbio assume a forma onte. Terá a referida substituição ficado a dever-se à semelhança com eira, termo antiquíssimo na nossa língua (1018) e outrora muito frequente? É difícil descortinar… 

Pergunta:

De há muito tenho encontrado nos jornais de grande circulação do país, o emprego das formas “legisferante” e legiferante. Por exemplo, em «No meu sentir, o fenômeno mais perturbador que se tem revelado nos últimos anos é a tendência legisferante e até constituinte com que o Supremo Tribunal Federal tem se comportado.?» (coluna de Frederico Vasconcelos, Folha de São Paulo, 31/12/2016).

No buscador aberto do referido jornal, encontro pelo menos 7 ocorrências com esta forma. Da mesma forma, na Folha de São Paulo, deparo-me, entre outros empregos similares, com a forma legiferante assim empregada: «A despeito de sua evidente relevância, as agências reguladoras não receberam do legislador uma delegação tão dilatada a ponto de poderem editar leis ou substituírem o Congresso no exercício soberano da função legiferante.» (Gustavo Binenbojm, “Opinião Tendências/Debates”, Folha de São Paulo, 17/08/2017). 

No buscador aberto do jornal, encontro o registro pelo menos 88 ocorrências com esta forma. Como explicar as duas formas concorrentes? Qual deve ser a forma, a rigor, prevalecer na norma padrão? Qual das duas formas tem o acolhimento por parte da Academia, seja portuguesa ou brasileira?

Grato, desde já, por uma resposta ou esclarecimento. 

Resposta:

Apesar da importância do Direito na sociedade romana, não existia, em latim, clássico, nenhum verbo correspondente ao nosso legislar. Para exprimir tal conceito, serviam-se os romanos de várias expressões: leges instituere, scribere, condere, componere.

Quanto aos homens que faziam as leis, ou cuja opinião ou parecer podia constituir força de lei, recebiam estes várias designações, consoante a época e o matiz pretendido: legum auctores («autores das leis»), legum scriptores («redatores das leis»), iuris auctores («autores do direito»), legum latores («estabelecedores das leis»), legum conditores («fundadores das leis»). O termo legum («das leis») é o genitivo plural do substantivo lex («lei»), cujo genitivo singular é legis («da lei»). Em vez de legum lator («estabelecedor das leis»), quem fazia as leis também se designava legis lator, igualmente escrito legislator («estabelecedor da lei»), termo que deu origem a legislador em língua portuguesa. Os poetas serviam-se outrossim do adjetivo legifer, que deu origem ao cultismo legífero em português. Virgílio, por exemplo, chamou legifera Ceres (En. 4, 58) à deusa Ceres.

No que diz respeito à legislação, na época clássica, os romanos exprimiam o conceito simplesmente por leges («leis») ou corpus iuris («corpo do direito»), mas mais tarde, na Vulgata, depara-se-nos o termo legislatio, que deu origem a

Pergunta:

Estou incumbido pela minha comunidade de escrever um pequeno texto sobre a parábola de Jesus na qual se refere o convite aos seus discípulos para que sejam sal e luz... E como a primeira parte da minha reflexão me tem levado para a necessidade de o discípulo ter de se humildar, regressar à sua essência – o humus –, assim como o sal, na parábola, deverá "desaparecer" para voltar a ser água, e dar sabor (transformar o mundo, a Humanidade), agradecia uma explicação sobre a origem (e compreensão semântica) da palavra humildade.

Grato pela disponibilidade.

Resposta:

Os romanos lançavam mão de vários vocábulos para designar a terra ou o solo: tellus, terra, humus, solum. O primeiro chegou até nós apenas por via erudita, através do adjetivo telúrico, enquanto o terceiro deu origem a húmus (com a variante humo), termo de significado mais restrito do que o seu étimo.

De humus provém o adjetivo humĭlis, que designava, em latim, tudo o que estivesse perto do solo ou, por extensão de sentido, tudo o que tivesse pouca altura. Servia para qualificar pessoas, animais, plantas e qualquer objeto. Por exemplo, lê-se turris humilis («torre baixa») em César e domus humilis («casa térrea») em Horácio, enquanto Cícero chamava ea quae sunt humiliora às plantas de baixo porte. Virgílio, por seu lado, na Eneida (IV, 255), referindo-se a Mercúrio e comparando-o a uma ave (avi similis), diz que «voa baixo» (humilis volat) «a rasar o mar» (iuxta aequora).

Este vocábulo, aliás, continua a ser utilizado em latim botânico, na descrição taxonómica das espécies, como atesta Willia...

<i>Fui</i> (do verbo <i>ser</i>) e <i>fui</i> (do verbo <i>ir</i>)<br> Porquê a mesma forma?

O filósofo Fernando Belo, professor jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, fez-nos chegar as seguintes questões acerca dos verbos ser e ir:

«Como é que se explica que estes dois verbos, em português como [...] em castelhano, pelo menos (em italiano não existe ire), tenham esta forma comum em pretéritos e conjuntivos, sendo que ela só existe em latim em esse, e não em ire? O meu interesse é de filósofo: como compreender que um verbo que indica essência e substância tenha tido uma influência sobre um outro que indica movimento? Fascina-me que uma forma verbal correlacione ser e movimento (em grego, o ser – phusis – é sobretudo o dos vivos, que se movem, crescem, etc). É possível explicar o fenómeno linguístico?»

Em resposta, o latinista e tradutor Gonçalo Neves lançou-se numa uma pesquisa etimológica donde resultaram os apontamentos que se seguem sobre este curioso caso histórico de parcial convergência morfológica de dois verbos semanticamente diferentes.

A  história e o significado da expressão  XPTO
= «de qualidade excelente»

Acerca da expressão XPTO (ver respostas aqui e aqui), uma  consulente de Lisboa, a tradutora Diana Marques, diz que ficou «[...] espantada e divertida por saber que tem origem nas letras gregas que compõem a palavra Cristo», mas considera que há uma questão por desvendar: «No entanto, continuo intrigada e quero perceber como pode ter derivado a palavra Cristo até vir a significar "algo de qualidade excelente". A correlação não me parece óbvia e talvez tenha uma qualquer anedota por detrás [...].»

Gonçalo Neves quis investigar a fundo as origens deste uso de XPTO para descobrir que, afinal, o muito que se diz não tem grande fundamento.