Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
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Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Sabemos que o aposto tem natureza substantiva e se refere a outro substantivo, certo?

Mas tenho uma dúvida: pode haver uma construção apositiva para se referir a um adjetivo, por exemplo?

Ex.: «O etanol é límpido, atributo fundamental deste combustível.»

Neste caso, ainda existe aposto?

Obrigado!

Resposta:

Segundo a tradição gramatical brasileira*, um aposto não retoma um adjetivo, mas sim (1) um substantivo, (2) um pronome, (3) um numeral, (4) um elemento substantivado, (5) uma oração inteira, como se vê, respectivamente:

(1) A limpidez, marca do bom etanol, é um atributo fundamental.

(2) Ela, a limpidez, é um atributo fundamental do bom etanol.

(3) Ambas (a limpidez e a baixa acidez) são atributos fundamentais do bom etanol.

(4) O purificar do etanol – processo importante para a sua limpidez – é fundamental.

(5) O etanol do Brasil é ótimo, fato incontestável.

Quanto à pergunta mais específica do consulente, não se encontrou na gramaticografia tradicional brasileira sequer um exemplo de aposto retomando um adjetivo, pelo que torna a análise sintática da oração bastante original. No entanto, no contexto frasal trazido, não nos parece haver outra análise sintática possível para «atributo fundamental deste combustível» senão como aposto do adjetivo límpido.

O que nos parece bastante coerente ser aplicado à análise sintática do aposto neste caso especial, levando-se em conta a sua natureza de retoma de segmentos com valor substantivo, é a relação metonímica entre o adjetivo límpido e o substantivo abstrato derivado dele (limpidez), como se a frase assim estivesse ...

Pergunta:

 Qual seria a correta classificação da estrutura destacada a seguir?

«O incidente ocorreu quando o jovem, acompanhado de amigos após uma partida futebol, estava pagando suas compras no caixa.»

A princípio, pensei que se tratasse de uma subordinada adjetiva explicativa reduzida de particípio; contudo, verificando a obra Novas Lições de Análise Sintática, de Adriano Gama Kury, notei que o autor repele absolutamente essa classificação.

Desde já meu agradecimento.

Resposta:

Apesar de Gama Kury não contemplar as orações adjetivas reduzidas de particípio*, outros gramáticos brasileiros assim o fazem, como Rocha Lima, Evanildo Bechara, Celso CunhaDomingos Paschoal Cegalla e outros.

Logo, há oração adjetiva explicativa reduzida de particípio na frase trazida pelo consulente, a qual equivale à seguinte oração adjetiva explicativa desenvolvida:

– O incidente ocorreu quando o jovem, que estava acompanhado de amigos após uma partida de futebol, estava pagando suas compras no caixa.

Sempre às ordens!

* Por ser brasileiro o consulente, a explicação nesta resposta se baseia na tradição gramatical brasileira.

 

A norma (in)culta do jornalismo
Ainda sobre o debate das fontes da norma culta no Brasil

«Você realmente acha que a linguagem jornalística pode ser tomada como fonte de norma CULTA, como modelo de exemplaridade idiomática, como alvo a ser desejado no que respeita à qualidade escrita?» – interroga o gramático brasileiro Fernando Pestana a respeito do debate à volta fonte da norma culta no Brasil. Texto publicado pelo autor no seu próprio mural de Facebook em 20 de fevereiro de 2025.

Pergunta:

Qual frase está correta ou ambas estão?

«Ganhei como prêmio um cheque de um mil reais.»

«Ganhei como prêmio um cheque de mil reais.»

Resposta:

Na norma-padrão do português brasileiro, não se usa um antes de mil, segundo todos os gramáticos normativos consultados.

Logo, o certo é «Ganhei como prêmio um cheque de mil reais».

Sempre às ordens!

Pergunta:

«Tanto... quanto» é locução conjuntiva comparativa quando essas palavras ligam orações ou elementos de mesma função sintática, funcionando como elementos coesivos. Porém, as duas palavras também estão inclusas nas classes morfológicas de pronomes indefinidos e de advérbios de intensidade.

1. Como locução conjuntiva, a expressão é sempre invariável ou há casos em que pode flexionar de acordo com o substantivo?

Por exemplo, todas as seguintes frases estão corretas e empregam esse tipo de conectivo?

«Tanto cães quanto gatos são amáveis.»

«Tanto Joana quanto Bia estavam lá.»

«Pegou tantos docinhos quantos pôde.» [Conjunção, pronome ou ambos?]

«Olha, eu estou assistindo tanto quanto você.» [Conjunção, advérbio ou ambos?]

O que me leva à segunda pergunta:

2. Esse conectivo é derivado dos pronomes e advérbios ou têm algo de essencialmente diferente, que o constitui como conjunção?

Obrigada.

Resposta:

Uma locução conjuntiva é um grupo de vocábulos, um todo semântico com valor de conjunção. Exemplos: «no entanto», «não obstante», «por isso», «por conseguinte», «visto que», «ainda que», «contanto que», «depois que», «à medida que», «para que», etc.

Segundo as gramáticas brasileiras*, «tanto... quanto» ou «tanto... como», quando conectam orações («Tanto estudo quanto/como trabalho») ou termos («Tanto Maria quanto/como João estudam português»), são conjunções correlativas aditivas, e não locuções conjuntivas.

Só é preciso perceber que, em outras situações, o quanto ou o como podem ser conjunções comparativas, estabelecendo uma ideia de igualdade. Portanto, não confunda a construção «tanto... quanto/como» aditiva com «tanto... quanto/como» comparativa – note que a mera mudança de posição dos vocábulos pode alterar a relação semântica e a consequente classificação das palavras:

– Ela tanto ri quanto chora. (adição)

Ou seja, ela ri e chora. Neste caso, «tanto... quanto» são conjunções correlativas; isto é, aparecem juntas nessa construção para, de forma mais enfática, realçar a ideia de adição – afinal «Ela ri e chora» não tem o mesmo realce que «Ela tanto ri quanto chora».

– Ela chora tanto quanto ri. (comparação por igualdade)

Ou seja, ela experimenta tristeza e alegria em igual medida. Nesse caso, por ser uma estrutura de comparativo de igualdade, o tanto é um advérbio de intensidade, porque modifica o sentido de chorar, e o quanto, por conectar as orações «Ela chora tanto» e «ri», é uma conjunção comparativa. O mesmo se dá na frase trazida pela consulente: «Olha, eu estou assistindo tanto quanto você», em que o verbo (ou locução verbal) da oração comparativa está implícito: «Olha, eu estou assistindo tanto quanto você (está assistindo)».

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