Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
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Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

No brilhante livro Manual de boa escrita; vírgula, crase e palavras compostas, da prof.ª Maria Tereza de Queiroz Piacentini, ela afirma que o mas pode ser usado sem vírgula quando «inicia oração seguida de uma conjunção subordinativa».

Eis uns dos seus exemplos:

«Mas quando me vi sem saber o que comer, bateu o desespero.»

«Os instrumentos iam parando... Mas à medida que as velas se apagavam, outras luzes se acendiam.»

Naturalmente, eu teria usado uma vírgula após o mas em ambos os exemplos por acreditar ser uma intercalação.

Dito isso, venho lhes consultar a esse respeito e aproveito para estender minha dúvida ao mesmo caso em se tratando de outras conjunções como e, então etc. quando iniciam uma oração.

Agradeço desde já.

Resposta:

No livro A vírgula, de Celso Pedro Luft, recomenda-se o uso deste sinal para marcar qualquer intercalação (p. 22, 32, 77); diz o autor que tal emprego é «uma pontuação racional»; em tom crítico, declara que «nem sempre os escritores usam essa vírgula, sobretudo quando pontuam mais pelo ouvido que pela sintaxe» (p. 41).

No Guia prático do português correto, volume 4 (Pontuação), o professor Cláudio Moreno ensina o mesmo sobre as vírgulas separando obrigatoriamente a intercalação.

Sob o verbete mas, o gramático Evanildo Bechara pontua o mesmo em seu livro Novo dicionário de dúvidas da língua portuguesa.

Ainda que não tratem diretamente desse fato, a própria redação dos gramáticos Celso Cunha, Rocha Lima, Domingos P. Cegalla, em suas gramáticas, aponta integralmente para a mesma regra delineada por Celso Pedro Luft.

Logo, os instrumentos normativos consultados indicam que deve haver vírgula quando a uma conjunção coordenativa segue uma intercalação (em forma de termo, expressão, oração), como em «Mas, quando me vi sem saber o que comer, bateu o desespero».

...
Linguagem jornalística: fonte da norma culta?
Sobre (supostas) verdades assentes

«Quando se diz que a linguagem jornalística pode ser tomada como fonte, e repositório, e corpus da verdadeira “norma culta”, isso significa que quaisquer formas linguísticas desviantes da norma-padrão tradicional encontradas em abundância (!) nos textos jornalísticos já podem ser automaticamente consideradas próprias da norma culta escrita?»

 O gramático brasileiro Fernando Pestana reúne alguns dados e interroga-se criticamente a respeito do valor dos textos jornalísticos como fonte confiável e modelar da norma-padrão num apontamento publicado no  seu mural do Facebook  em 1 de outubro de 2024.

 

Na imagem, banca de jornais e revistas da rodoviária de Brasília (fonte: "Jornais impressos: circulação despenca 16,1% em 2022...", Poder360, 31/01/2023)

 

 

Pergunta:

Estou precisando classificar essa oração subordinada reduzida de gerúndio:

«CONSIDERANDO OS DOIS INDICADORES, a lista final contém 210 198 pesquisadores.»

Seria uma oração subordinada adverbial temporal reduzida de gerúndio? Causal?

Obrigado.

Resposta:

Segundo o gramático Evanildo Bechara, em seu livro Lições de português pela análise sintática, aqui estão os seis valores semânticos possíveis das orações subordinadas adverbiais reduzidas de gerúndio*: causa, consequência, concessão, condição, modo (meio ou instrumento) e tempo.

Um critério didático e lógico para verificar o valor semântico de uma oração subordinada adverbial reduzida de gerúndio é a paráfrase, em forma de oração desenvolvida. No entanto, é preciso dizer que nem toda oração subordinada adverbial reduzida de gerúndio inicia um período – em geral, somente as causais, concessivas, condicionais e temporais. Ainda assim, é preciso levar em conta o contexto frasal e o sentido pretendido para ficar bem definido o sentido da oração adverbial.

Considerando todos os pontos acima, sobretudo a questão semântica no contexto em que a frase do consulente foi produzida, há as seguintes possibilidades:

1. Causa: Visto que consideramos os dois indicadores, a lista final contém 210 198 pesquisadores; A lista final contém 210 198 pesquisadores porque consideramos os dois indicadores.

2. Concessão: Conquanto consideremos os dois indicadores, a lista final contém 210 198 pesquisadores; A lista final contém 210 198 pesquisadores ainda que consideremos os dois indicadores.

Obs.: Penso que esta leitura dependa dum contexto muito claro. Seria mais fácil a interpretação se a frase estivesse assim escrita: «Considerando os dois indicadores, a lista final contém ainda 210 198 pesquisadores" ou "Mesmo considerando os dois indicadores, a lista final contém 210 198 pesquisadores.»

3. Condição: Se considerarmos os dois indicadores, a lista final contém 210 198 pesquisadores; A lista final contém 210 198 pesquisadores desde que conside...

Pergunta:

Respeitosa turma do Ciberdúvidas, como vão? Antes de qualquer coisa, é preciso agradecer muito muito muito pelo trabalho de vocês. Vocês não podem imaginar a quantidade de vezes em que salvam minhas dúvidas e me ajudam a seguir em frente no ofício da escrita. Me impressiona quando me vejo lendo artigos e respostas que vão de 1996 a 2024. É coisa linda mesmo. Vida longa!

Dito isso, queria tirar uma dúvida que sempre me pega. E que me surgiu numa passagem específica de algo que estou escrevendo. A saber: «...mede o litoral como à criança no batente da porta.» A ideia aqui é uma comparação: a pessoa em questão mede o litoral como mediria a altura de uma criança no batente de uma porta. Antes, a passagem não tinha crase: «...mede o litoral como a criança no batente da porta.» Entendo que ela estaria correta, seria uma comparação direta: mede o litoral como [mede] uma criança no batente.

Agora, revisando, me pareceu mais interessante o uso da crase. Além de esteticamente mais intrigante, acho que ajudaria a não confundir a leitura. Sem ela, a pessoa pode entender que se mede o litoral como uma criança o mediria no batente da porta. Essa crase está correta, não?

Por vezes, quando vamos dançando com os verbos, eles parecem aceitar uma regência indireta que normalmente não aceitam. Poderiam elucidar a questão? Além de entender se a crase faz sentido, gostaria de entender se estou doidão ou se essa variação de regência existe mesmo.

Desde já, muito obrigado! Abraços!

Resposta:

O consulente percebeu bem.

Por razões de clareza, pode haver um objeto direto preposicionado* iniciado pela preposição a numa construção comparativa. Exemplo:

«Olho Gabriela como a uma criança, e não mulher feita.» (Ciro dos Anjos)

Se não houvesse a preposição, o sentido seria outro: «Olho Gabriela como uma criança (olha)...», em que uma criança passaria a ser o sujeito do verbo implícito, e não o objeto direto. Com a preposição, a leitura é esta: «Olho Gabriela como olho uma criança...»

Assim, aplica-se o mesmo em «... mede o litoral como à criança no batente da porta», o que justifica a crase, pois a preposição a (usada estilisticamente para favorecer a clareza) que introduz o objeto direto preposicionado se contrai com o artigo definido a (a + a criança = «à criança»).

Fica a seguinte sugestão de consulta para mais detalhes: Gramática Normativa da Língua Portuguesa, de Carlos Henrique da Rocha Lima (2011: 303-305); está na parte de objeto direto preposicional. Boa leitura.

Sempre às ordens!

 

*Visto ser brasileiro o consulente, usou-se na resposta a nomenclatura e a referência gramaticográfica brasileira.

Pergunta:

Na frase «Não sei por quê nem como aquilo ocorreu», qual a justificativa para o porquê estar separado e com acento na frase acima já que não vem imediatamente antes de um sinal de pontuação, final de frase ou isolado?

Obrigado.

Resposta:

Na norma-padrão do português brasileiro, usa-se por quê em três contextos:

(1) quando vem sucedido de sinal de pontuação (este é o mais frequente);
(2) quando finaliza uma oração;
(3) quando vem antes de conjunção coordenativa ligando dois termos.

Em todos os três casos, o monossílabo tônico terminado em e é acentuado com acento circunflexo (quê), conforme a regra de acentuação gráfica.

Note que a vogal e é pronunciada claramente com som de ê – é bem diferente da pronúncia do que numa fala espontânea e dinâmica em «Não sei por que ela faltou à aula», em que o som de "que" é comumente empregado atonamente, assim: "qui" ("Não sei pur qui ela faltou à aula").

Essa pronúncia tônica do quê é o que determina o uso de «Não sei por quê nem como aquilo ocorreu» ou «Sem questionarem por quê ou para quem ia o prêmio, decidiram participar do jogo», que exemplificam o caso (3).

Exemplos do caso (1):

– Agora você soube por quê, certo?
– Sem seu esclarecimento, nunca entenderia por quê.
– Por quê? Não é possível!

Exemplos do caso (2):

– Não consigo compreender certas atitudes suas, ainda que você me diga que, às vezes, entender por quê é difícil mesmo.
– Descobrir por quê ficou fácil, sobretudo depois que eles foram denunciados.

Observação: não se usa por quê antes de vírgula marcando intercalação; exemplo: «O aluno não sabe por que, mesmo depois da explicação, ele foi reprovado pelo professor» (certo); «O aluno não sabe por quê, mesmo depois da explicação, ele foi reprovado pelo professor» (errado).

Sempre às ordens!