Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
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Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

 Não há consenso perfeito entre os gramáticos de nosso idioma (e de idioma algum, creio eu). Há, por exemplo, certo debate quando ao plural de certos substantivos compostos. A minha dúvida é a seguinte: como devemos proceder em tais casos?

Há matérias em que basta recorrer ao parecer do autor com mais autoridade para saber a posição correta (ou ao menos mais segura), mas me parece dificílimo definir qual dos entendidos mais célebres de nosso idioma (Napoleão Mendes de Almeida, Celso Cunha, Rocha Lima, Cegalla, Manuel Said AliBechara etc.) possui maior autoridade. Basta aderirmos ao julgamento do autor de nossa preferência? Ou pode ocorrer deste ou daquele gramático ter uma posição errada? E caso possa haver equívoco por parte de um autor, como podemos saber quem está correto?

Obrigado.

Resposta:

O papel dos gramáticos normativos é descrever (e normatizar) um modelo de uso supradialetal (a norma-padrão) a ser empregado em situações mais formais de comunicação, a fim de padronizar a língua tomada como culta, aquela de prestígio social. Os dicionaristas colaboram para isso também.

Quando se deseja extrair um padrão a partir das divergências normativas entre renomados estudiosos, é preciso verificar (1) qual é a visão majoritária entre eles (que não necessariamente pode ser única, pois a norma-padrão comporta formas variantes entre si) e (2) como se vêm usando as formas linguísticas contemporaneamente.

Para o ponto (1), é preciso cotejar o que ensinam os gramáticos e dicionaristas, para daí extrair a visão majoritária. No caso do estudo do léxico ou da ortografia, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), da Academia Brasileira de Letras (ABL), também entra em cena, sobretudo como argumento de maior peso.

Para o ponto (2), é preciso verificar em textos escritos pelos melhores escritores do idioma, que são, em geral, considerados pela sociedade como os nossos literatos, ensaístas, articulistas de reconhecida qualidade escrita entre os seus pares e entre os leitores qualificados. Se se deseja conhecer a norma culta lusitana ou a norma culta brasileira, é preciso investigar a fundo como os escritores lusitanos ou brasileiros têm usado a língua (escrita) ao longo do tempo — com foco maior na norma contemporânea, para não se incorrer em anacronismo.

O ponto (2) costuma estar de acordo com a visão majoritária do ponto (1), pois existe uma premissa que governa as decisões dos estudiosos e normatizadores da língua: o uso determina a norma, por isso os gramáticos e dicionaristas vão colher nos usos linguísticos frequentes nos melhores escritores aquilo que definem ...

Pergunta:

Passei para minha amiga revisora de textos um documento de texto, contendo um informativo de divulgação dos livros da Saga Confusões Conjuntas (17 livros principais de comédia dramática, pastelão e maluca e um livro complementar de minha autoria).

No caso, tinha escrito: «dezessete livros principais» (por extenso), e ela trocou por algarismos, passando para mim esta referência aqui no caso.

Minha dúvida é: por quais motivos numerais com até duas sílabas devem ser escritos por extenso, enquanto numerais com três ou mais sílabas devem ser escritos com algarismos?

E por que o numeral cem (100) é uma exceção à regra também?

Muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

Eis o que diz Evanildo Bechara no tópico "Escrita dos Numerais", no capítulo de Numeral da sua gramática:

«Não há princípios rígidos para, na escrita, se usarem os numerais por extenso ou em algarismos. A prática na imprensa e em livros pode-nos oferecer as seguintes recomendações extraídas do Manual de Redação e Estilo de O Estado de S. Paulo

Em seguida, apresenta mais de 30 orientações divididas entre "a) Instruções gerais", "b) Por extenso" e "c) Em algarismos".

No que toca à dúvida levantada pelo consulente, Bechara nada diz sobre «até duas sílabas, X; e a partir de três sílabas, Y». Pelo contrário, as orientações gerais do autor são estas a respeito dos numerais cardinais: «De um a dez, escreva os números por extenso; a partir de 11, inclusive, em algarismos: dois amigos, seis operadores, 11 jogadores, 18 pessoas. Exceção: cem e mil.» No entanto, há casos específicos em que se usam algarismos, e não numerais por extenso, como em datas (Rio de Janeiro, 2 de setembro de 2024), ou idades de pessoas (Ela tem 3 anos), ou porcentagens (Lá se foram 5% dos votos).

Desse modo, uma vez que o estudioso dedica três páginas de orientações sobre esse assunto, recomendamos vivamente que o consulente (ou o leitor desta resposta) consulte diretamente a gramática do professor Evanildo Bechara para mais esclarecimentos.

Sempre às ordens!

Pergunta:

Tem havido constantes discussões entre angolanos e brasileiros nas redes sociais, aqueles corrigem estes, afirmando ser errado dizer-se «na Angola», sendo o certo, «em Angola». Face ao exposto, eis as minhas questões?

1. Qual é a forma correcta segundo as normas portuguesa e brasileira, respectivamente?

2. Caso seja incorrecto do ponto de vista gramatical, este desvio, por assim dizer, por ser extremamente comum entre os brasileiros, pode ser considerado correcto segundo à norma brasileira? O que se pode dizer do ponto de vista normativo e do ponto de vista descritivo?

3. O que se pode dizer do ponto de vista sociolinguístico?

Obrigado.

Resposta:

Segundo todas as gramáticas brasileiras e portuguesas consultadas (descritivas e normativas), há uma unanimidade normativa: não se emprega artigo definido antes de Angola.

É claro que, assim como com qualquer topônimo não antecedido de artigo definido, pode-se usar tal determinante antes de Angola quando houver alguma especificação. Exemplo:

– A minha linda Angola tem muitas belezas.

–  A Angola dos meus pais não é mais a mesma.

Se, do ponto de vista descritivo, brasileiros vêm usando «a Angola», não se pôde constatar nas gramáticas descritivas do português do Brasil, de modo que se deveria proceder a uma pesquisa inédita com fins de confirmação desse suposto fenômeno.

Sempre às ordens!

Pergunta:

O verbo demorar pode se tornar impessoal quando estiver associado à passagem do tempo?

Qual das suas orações abaixo está correta?

Demora-se meses para terminar um projeto como este.

Demoram-se meses para terminar um projeto como este.

Obrigado.

Resposta:

Após análise em diferentes gramáticas brasileiras e dicionários de regência, não se constatou a classificação «verbo impessoal» para o verbo demorar.

Assim, é correto analisar sintaticamente a frase «Demora-se meses para terminar um projeto» da seguinte maneira*:

– O se, em «Demora-se» é uma partícula de indeterminação do sujeito, de modo que o verbo (intransitivo) fica obrigatoriamente na 3.ª pessoa do singular.

– O termo meses é um adjunto adverbial de tempo.

– A oração «para terminar um projeto» é subordinada adverbial final; o sujeito de terminar é igualmente indeterminado.

Sempre às ordens!

*Visto ser o consulente do Brasil, adota-se aqui a análise e a nomenclatura da tradição gramatical brasileira.

 

Pergunta:

Sabemos que «através de» deve ser usado somente no sentido de transversal.

Por exemplo: «vi a criança através da janela».

Mas tive uma dúvida, então eu gostaria de saber se é correto se dizer:

«Isso nos convida a louvar ao Senhor através da música.»

Pergunto porque subentende-se que o som atravessa o aparelho seja rádio, seja TV ou outro.

Muito obrigada!

Resposta:

Esta afirmação de que só se deve usar «através de» com o sentido de transversalidade faz parte de lições gramaticais antigas – infelizmente ainda encontradas em salas de aula. No entanto, a língua muda, e com isso novos usos passam a fazer parte da norma culta: esse é um deles, em que «através de» se tornou sinônimo de «por meio de», a ponto de serem hoje intercambiáveis.

Se me permite, terei de estender-me na resposta. Veja cinco motivos para pôr termo a esse «mito gramatical».

1. A língua muda, inclusive a língua culta.

Desde 1981, um dos gramáticos mais puristas da Língua Portuguesa (Napoleão Mendes de Almeida) já havia dito em seu dicionário, sob o verbete "Através de":

«Se constitui erro empregar ATRAVÉS DE para indicar o agente da passiva (O gol foi feito através do jogador Tal), não se deve por outro lado cair no exagero oposto de julgar que a locução só é possível quando significa "de um lado para o outro", "de lado a lado" (Passou através da multidão – Passou a espada através do corpo). NÃO VEMOS ERRO em: "A palavra veio-nos do latim ATRAVÉS DO francês", como não vemos na passagem de Herculano: "ATRAVÉS desses lábios inocentes murmuram durante alguns instantes as orações submissas". Há aí metáfora...» (destaques meus)

2. Esse uso de ATRAVÉS DE como sinônimo de POR MEIO DE é encontrado na redação de grandes gramáticos antigos (Júlio Ribeiro, Maximino Maciel, João Ribeiro, Alfredo Gomes etc.) e modernos (Evanildo Bechara, Celso Cunha, Domingos Paschoal Cegalla, Celso Pedro Luft, etc.).

3. Além disso, muitos escritores da nossa literatura (antigos e modernos) fizeram e fazem uso de ATRAVÉS DE como sinônimo de POR MEIO DE. Eis alguns nomes: Machado de Assis, Olavo Bilac, Euclides da Cunha, Fernando Pessoa, Alberto Mussa, Luis Fernando Veríssimo, Rubem Fonseca, Chico Buar...