Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
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Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual o correto: «Por favor, me deixe viver!» ou «Por favor, deixe-me morrer!»

E por quais razões que é o correto?

Muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

O conceito de correção está ligado àquele modo de uso da língua com prestígio social de cultura.

Para determinar a norma linguística indicadora de alta cultura, é preciso verificar os usos praticados por pessoas cultas da sociedade, isto é, pessoas com elevado grau de letramento e cultura, as quais usam a língua num alto nível de qualidade, sobretudo na modalidade escrita. A partir desses usos, determina-se a norma tomada socialmente como "correta", isto é, aquela norma a ser empregada em contextos comunicativos mais monitorados. Assim é que se extrai e se sistematiza o emprego modelar da língua, a norma-padrão, que passa a servir qual modelo de uso supradialetal em situações especiais de comunicação (em geral, naquelas com maior grau de formalidade e polidez).

Dito isso, os gramáticos normativos, responsáveis por sistematizar a exemplaridade da língua de referência, detectaram que nessa norma, a ênclise é a colocação de rigor quando o clítico vem acompanhado de verbo no imperativo: «Por favor, deixe-me viver!». Soma-se a isso o fato de, após vírgula marcadora de pausa evidente, a ênclise também ser a colocação de rigor na norma-padrão.

Entretanto, na norma popular da variedade brasileira do Português, espelhada naturalmente na fala espontânea/coloquial, usa-se «Por favor, me deixe viver!».

Desse modo, se você (brasileiro) quiser empregar a norma-padrão na fala do dia a dia, use a ênclise. Se quiser a norma popular, use a próclise. Tudo vai depender do contexto de uso da língua – se mais formal, ênclise; se menos formal, próclise.

Sempre às ordens!

Pergunta:

Eu gostaria de saber sobre a regência do verbo agendar.

O correto seria «agendar para a quinta-feira que vem» ou «agendar na quinta-feira que vem»?

Obrigado desde pronto pela atenção da resposta.

Resposta:

Não há registro do verbo agendar nos dois dicionários de regência verbal mais consagrados do Brasil (um de autoria de Celso Pedro Luft e outro de autoria de Francisco Fernandes).

Não obstante, isso não é um problema, pois os sinônimos desse verbo passam a servir de parâmetro para a percepção da sua regência.

Como agendar significa «marcar uma data na agenda», indicando-se a ideia de fixação de um prazo, foram consultadas nesses dicionários as regências dos seguintes sinônimos de agendar: marcar (com o sentido de «fixar um prazo, determinar uma data») e emprazar/aprazar (ou seja, «convocar a comparecer em prazo determinado», «marcar prazo para algo»).

No dicionário de Celso Pedro Luft, esses dois verbos sinônimos de agendar são analisados como transitivos diretos e indiretos*, da seguinte maneira: marcar X para Y («marcar um encontro para a sexta-feira»); emprazar X para Y («emprazar os convidados para a próxima semana»).

Assim, segundo se depreende de Luft, deve-se usar a preposição para, a fim de introduzir o complemento indireto de agendar: «agendar (algo/alguém) para a quinta-feira que vem».

No entanto, não há absolutamente nenhum impedimento para a construção desses verbos sinônimos de agendar (marcar e emprazar/aprazar) como transitivos diretos, de modo que também está gramaticalmente correta a frase «Fulano agendou [algo] na quinta-feira que vem», caso em que o termo «na quinta-feira que vem» exerce a função sintática de adjunto adverbi...

Pergunta:

Estudando os valores semânticos da preposição com no livro Sintaxe Clássica Portuguesa de Cláudio Brandão de Sousa, eis que me deparo com um trecho de um texto de Camões.

Daí o que queria, de fato, era ajuda na verdadeira análise da expressão «com que».

Sei que com estabelece causa no contexto. Agora quanto a esse que, seria pronome relativo ou toda a expressão estaria fazendo as vezes de uma conjunção causal?

«correm rios de sangue desparzido, com que também do campo a cor se perde.» (Os Lusíadas, III, 52)

Resposta:

Cláudio Brandão entende que a preposição com antes do pronome relativo que, o qual retoma «rios de sangue», tem valor semântico causal. Logo, «com que» funciona sintaticamente como adjunto adverbial de causa*.

Logo, o segmento d'Os Lusíadas – a saber: «com que também do campo a cor se perde» – equivale, por paráfrase, a «pelos quais a cor do campo também se perde».

Em outras palavras, a cor do campo (verde) é perdida por causa dos rios de sangue que o mancham (de vermelho).

Sempre às ordens!

* Usou-se a nomenclatura gramatical praticada no Brasil porque o consulente é brasileiro.

Pergunta:

Pesquisando em dicionário o significado da palavra outrossim, vi que é um advérbio equivalente a bem assim, da mesma forma. Encontrei na gramática metódica de Napoleão Mendes de Almeida como se conjunção explicativa fosse e, ainda, encontrei em outros livros mais duas classificações para ela: como conjunção adversativa e também aditiva, ou seja, há inúmeras funções para esta palavra.

Diante disso, o que questiono é o que, de fato, considerar como certo, afinal, o que diríamos a um aluno ou mesmo a uma pessoa ávida estudiosa da língua portuguesa, se esta nos fizesse essa pergunta?

Como se pondera as informações e se chega a um consenso, a uma verdade? O que se leva em consideração para esse tipo de investigação?

Resposta:

Segundo os dicionários brasileiros mais consagrados (Aulete, Michaelis, Aurélio e Houaiss), outrossim é um advérbio.

Os dicionários lusitanos (Priberam, Infopédia e Academia das Ciências de Lisboa) dizem o mesmo.

O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), da Academia Brasileira de Letras (ABL), diz o mesmo.

Paradoxalmente, o gramático Napoleão Mendes de Almeida dá diferentes classificações para esta palavra: no capítulo de Advérbio de sua gramática, classifica outrossim como palavra denotativa de inclusão; porém, no capítulo de Conjunção, classifica-a como conjunção explicativa – sem apresentar nenhuma explicação para essa visão peculiar.

Pelos usos desta palavra dentro da norma culta escrita e da relação que ela estabelece com os segmentos dentro da frase, à semelhança de um advérbio com valor de acréscimo como também, a classificação mais precisa parece ser a de advérbio mesmo.

Eis alguns exemplos:

1. «Merecem outrossim reparo os seguin...

Pergunta:

Consultando o Dicionário Escolar das Dificuldades da Língua Portuguesa de autoria de Cândido Jucá (filho), eis que tive uma surpresa ao visualizar o verbete durante, pois nele conta o registro da locuções «durante que» como sinônimo de enquanto, algo novo pra mim , pois nunca havia visto nas gramáticas que consultei .  

Assim queria saber, por gentileza, se essa doutrina é ensinada por outro gramático ou lexicógrafo.

«(…) durante que , conj.- enquanto. Houve uma pequena pausa, durante que o Pé. Molina contemplava a festa ( Alencar).(…)»

Resposta:

Em pesquisa no Corpus do Português, foram encontradas menos de 10 ocorrências de «durante que» (todas do século XIX), na qual essa locução poderia ser substituível pela conjunção temporal enquanto
 
Nas gramáticas e dicionários contemporâneos consultados, tanto do Brasil quanto de Portugal, nada foi encontrado.
 
Logo, os indícios sugerem que tal expressão é um arcaísmo.