Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
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Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Por favor, a frase:

«O técnico brasileiro chamou o novo talento para a seleção.»

O verbo chamar nesta frase é verbo transitivo direto e indireto?

O termo «para seleção» é objeto indireto? Ou qual a função sintática do referido termo?

Obrigado.

Resposta:

Sim, é um objeto indireto*.

Isso se confirma, por exemplo, no Dicionário prático de regência verbal, de Celso Pedro Luft, sob o verbete chamar

Segundo o autor, quando esse verbo tem o sentido de convocar, passa a exigir dois complementos: um direto e outro indireto.

Eis os exemplos que apresenta Luft:

(1) «O presidente chama o conselho (para uma reunião).»

(2) «... nunca nenhum juiz chamou-o para jurado.» (José Lins do Rego: Cunha)

Portanto, na frase «O técnico brasileiro chamou o novo talento para a seleção», o termo sintático «o novo talento» funciona como objeto direto e «para a seleção», como objeto indireto.
 
Sempre às ordens!
 

* Por ser brasileiro o consulente, a terminologia empregada está consoante a nomenclatura tradicional vigente empregada no ensino de gramática no Brasil.

Pergunta:

No livro 1000 erros de português da atualidade, o autor, o famoso gramático Luiz Sacconi, no item 854, intitulado "não faça isso, não", escreveu:

«Usa-se sempre vírgula antes do não, como nessa frase [não faça isso, não]. Outro exemplo: Eu nunca diria uma coisa dessas, não. *** Não vou lá, não.»

Gostaria de saber se a repetição do não ao fim da frase é realmente aceita pela gramática normativa; se sim, se ela precisa ser precedida imediatamente por vírgula, como diz o autor; se sim, por qual razão, em que obras esse uso aparece nos nossos melhores escritos e quais gramáticos, além do citado, abonam esse uso.

Além disso, a aceitação desse uso não estaria em conflito com o que ensinou o gramático Celso Cunha (2014, p. 442), no livro Gramática Essencial, ao escrever: «os [= os advérbios] de negação antecedem sempre o verbo: Não aparece vivalma. (V. DE CARVALHO) Não dormi, tampouco estive acordado. (DA COSTA E SILVA)»?

Obrigado.

Resposta:

De início, cumpre observar que a lição dada pelo gramático Celso Cunha não tem ligação nem semelhança com a estrutura de dupla negação, completamente correta e existente na norma culta escrita lusófona (há séculos!) e documentada por gramáticos normativos tradicionais.

Sobre as suas questões, acompanhe:

(1) A repetição do "não" ao fim da frase é realmente aceita pela gramática normativa?

Sim, é. Já se encontra isso em João Ribeiro, na sua Grammatica Portugueza (1889: 257). Em Julio Ribeiro, na sua Grammatica Portugueza (1911: 301). Em Alfredo Gomes, na sua Grammatica Portugueza (1913: 343). Em Maximino Maciel, na sua Grammatica Descriptiva (1914: 363). Em Domingos P. Cegalla, no seu Dicionário de dificuldades da língua portuguesa (2012: 268). Em Celso Cunha e Lindley Cintra, na sua Nova gramática do português contemporâneo (2017: 169). Certamente há outros gramáticos não elencados aqui a ensinar o mesmo.

(2) O "não" repetido precisa ser precedido imediatamente por vírgula; se sim, por qual razão?

Sim, é a prática escrita, o uso que determina a norma. A razão é a ênfase, o reforço, a intensidade atribuída ao sentido negativo que se deseja imprimir à frase.

(3) Esse uso aparece nos nossos melhores escritores?

Sim, tanto nos portugueses quanto nos brasileiros: Miguel Torga, Júlio Dinis, Almeida Garrett, Antonio Callado, José de Alencar, Coelho Neto, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Cecília Me...

Pergunta:

Em «as meninas chegaram em silêncio», «em silêncio» é adjunto adverbial ou predicativo do sujeito?

Obrigado

Resposta:

O termo sintático «em silêncio» pode ser analisado de duas maneiras diferentes*: (1) adjunto adverbial de modo ou (2) predicativo do sujeito.

(1) As meninas chegaram em silêncio = As meninas chegaram silenciosamente (de modo silencioso).

(2) As meninas chegaram em silêncio = As meninas chegaram silenciosas = As meninas, quando chegaram, estavam em silêncio/silenciosas.

Em (1), note que a interpretação se baseia na relação sintática entre o termo «em silêncio» e o verbo. Observe também que, nessa leitura, há uma coerente substituição entre «em silêncio» e o advérbio de modo «silenciosamente». Esses dois argumentos sustentam a classificação «adjunto adverbial de modo».

Em (2), note que a interpretação se baseia na relação sintática entre o termo «em silêncio» e o sujeito «as meninas» – afinal, «(estar) em silêncio» é uma característica, um estado do sujeito. Observe também que há uma coerente comutação entre «em silêncio» e um adjetivo: «silenciosas». Esses dois argumentos sustentam a classificação «predicativo do sujeito».

Portanto, há dupla possibilidade de análise sintática, a depender da leitura que se faça.

Sempre às ordens!

* Por ser brasileiro o consulente, foram usados recursos próprios da gramática tradicional brasileira, cujo aporte teórico ainda é majoritário no ensino de gramática praticado no Brasil.

Pergunta:

Tenho certeza de que se flexione o gênero do particípio do verbo fazer na construção «ter sido feita a pergunta».

Entretanto, tenho a impressão de que o mesmo raciocínio não se aplique a «ter-se feito a pergunta». Em meu inseguro pensamento, nesse último caso o particípio do verbo fazer fica no masculino, soando-me inadequado «ter-se feita a pergunta».

Pediria a gentileza de informar o que seria o correto, «ter-se feito a pergunta» ou «ter-se feita a pergunta» e, caso «ter-se feito a pergunta» seja uma construção aceita no português (imagino que sim, já a vi muitas vezes), gostaria também de perguntar o motivo de não se flexionar o gênero do particípio nesses casos de haver-se + particípio ou ter-se + particípio, que me parecem relacionados com a voz passiva sintética.

Obrigado.

Resposta:

A forma correta (gramatical) é «ter-se (ou haver-se) feito uma pergunta», porque o particípio não varia em construções de voz passiva sintética (1). Já na voz passiva analítica (2), a flexão é normal, um fato gramatical inconteste.

Acompanhe:

(1a) Tinha-se realizada uma festa no parque da cidade. (frase agramatical)
(1b) Tinha-se realizado uma festa no parque da cidade. (frase gramatical)

(2) Uma festa tinha sido realizada no parque da cidade. (frase gramatical)

A razão de a frase (1a) ser agramatical se deve ao fato de «tinha realizado» ser uma construção de voz ativa, cujo verbo principal, por regra consuetudinária, não sofre flexão. Assim, só a frase (1b) é gramatical.

Note que a presença do se apassivador na fórmula de voz ativa («tinha realizado» > «tinha-se realizado») não altera em absoluto a natureza morfossintática da locução verbal, mas sim atribui um valor semântico passivo a ela e, por conseguinte, ao seu sujeito paciente («uma festa»).

Por esses motivos, o gênero do particípio não varia em voz passiva sintética.

Sempre às ordens!

 

Nota: Por ser brasileiro o consulente, foi usada a nomenclatura da gramática tradicional brasileira, cujo aporte teórico ainda é majoritário no ensino de gramática praticado no Brasil.

Pergunta:

Em «comparecer à reunião», «à reunião» é um adjunto adverbial ou complemento indireto?

Vi algumas respostas sobre a regência do verbo; porém continuei com a dúvida.

O dicionário da Academia Brasileira de Letras define o verbo assim (com a minha frase como exemplo):

«Apresentar-se em um local determinado.»

«Local determinado» não pode ser considerado um adjunto adverbial? Podem me ajudar?

Agradeço aos Senhores pela enorme atenção que sempre tiveram com quem busca conhecimento.

Resposta:

A gramaticografia brasileira tradicional* apresenta mais de uma possibilidade de análise em casos como este, de modo que os termos «à reunião» e «em um local determinado» podem ser interpretados como:

(1) adjunto adverbial de lugar¹, uma vez que exprimem uma circunstância adverbial locativa;

(2) objeto indireto², porque são complementos exigidos pelos verbos comparecer e apresentar-se (fazer-se presente);

(3) complemento circunstancial³, porquanto os verbos exigem um complemento preposicionado que apresenta um valor semântico de lugar.

 Esse mesmo imbróglio ocorre, normalmente, com verbos indicativos de movimento/deslocamento ou moradia, a saber: «Vamos à praia amanhã», «Saíram do estádio de futebol», «Moro em Portugal», etc.

 

Sempre às ordens!

 

* Por ser brasileiro o consulente, a resposta à sua dúvida centrou-se naquilo que se considera fonte bibliográfica comum dentro do ensino tradicional de gramática praticado no Brasil.

 

1 Cf. C. Cunha e L. Cintra, Nova gramática do português contemporâneo. Lexikon, 2017, 7.ª ed., p. 167-168.

2 Cf. C. P. Luft, Dicionário prático de regência verbal. Ática, 8.ª ed., 2008, p. 65, 127-128.

3 Cf. C. H. Rocha Lima, Gramática normativa da língua portuguesa. José Olympio, 49.ª ed., 2011, p. ...