Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
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Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Em primeiro lugar, parabéns pelo ótimo trabalho!

Gostaria de saber, nas frases abaixo, se o termo «mulheres» é um aposto explicativo, caso de se utilizarem as vírgulas, ou especificativo, devendo as frases ser escritas sem vírgula.

«Nós, mulheres, não tínhamos os mesmos direitos.»

«Isso diz respeito a nós, mulheres.»

Obrigada desde já!

Resposta:

Sim. Está correto o raciocínio.

Seja em linguagem literária, seja em linguagem jornalística, ambos os registros (com e sem vírgula[s]) são encontrados no Corpus do Português – comprova-se isso com o uso dos seguintes códigos de busca na pesquisa: «nós, mulheres,»; «nós mulheres»; «nós, homens,»; «nós homens»; e afins.

Desse modo, as frases abaixo estão corretamente escritas (nas duas primeiras, o termo «mulheres» funciona sintaticamente como aposto explicativo; nas duas últimas, como aposto especificativo):

(1) Nós, mulheres, não tínhamos os mesmos direitos.

(2) Isso diz respeito a nós, mulheres.

(3) Nós mulheres não tínhamos os mesmos direitos.

(4) Isso diz respeito a nós mulheres.

Sempre às ordens!
 
* Por ser brasileira a consulente, empregou-se terminologia própria da nomenclatura tradicional vigente utilizada no ensino de gramática no Brasil.

Pergunta:

Gostaria de retirar uma dúvida acerca da tradicional divisão da gramática entre Morfologia e Sintaxe.

De uma forma geral, nos livros a que já tive acesso, a distinção entre essas duas partes se dá da seguinte forma: a Morfologia estuda a estrutura das palavras e sua classificação de forma isolada e a Sintaxe estuda como as palavras se articulam e qual função ocupam no interior de uma oração. Essa classificação é questionada pelos estudiosos da área?

Parece-me muito simplista esse tipo de divisão, uma vez que mesmo na analise morfológica o contexto da frase é importante e temos que analisar como o termo se articula no interior da frase, sendo que um mesmo vocábulo pode pertencer a classes gramaticais de acordo com a situação.

Exemplo: «O sambar da mulher é bonito»

Nesse caso, "sambar" é um substantivo e não um verbo como em «Eu amo sambar».

«Existe bastante flor no jardim»

Nesse caso, "bastante" é adjetivo e não um advérbio como em «Eu comi bastante bolo».

Tendo em vista o questionamento supracitado, o que acham? Existe algum conceito que seja mais preciso para diferenciar a Morfologia e a Sintaxe?

Obrigado.

Resposta:

A Morfologia e a Sintaxe vão além das definições apresentadas na pergunta. Cada estudioso (seja gramático, seja linguista) define à sua maneira esses dois níveis da gramática. Todavia, geralmente há em comum alguns pontos dentro das conceituações. 

Ao passo que a Morfologia trata da estrutura das palavras (radical, desinências, afixos, etc.), da formação das palavras (derivação, conversão, composição, etc.) e da classificação das palavras (substantivo, adjetivo, verbo, etc.), a Sintaxe trata da combinação das palavras para a formação duma frase, levando-se em conta a ordem, a relação e a função exercida por elas dentro do período.

Com uma visão mais apurada, alguns estudiosos (como os gramáticos Celso Cunha e Evanildo Bechara) perceberam que a Morfologia e a Sintaxe não são dois domínios autônomos, porque tudo na língua está relacionado a uma combinação de formas. Assim, surge o conceito de Morfossintaxe, na qual uma palavra só passa a receber, com precisão, determinada classificação morfológica (e sintática) a depender da relação entre as palavras dentro da frase.

É a partir da Morfossintaxe, portanto, que se afirma ser um substantivo a palavra caminhar na frase «O caminhar da mulher é bonito», pois (1) esse vocábulo vem antecedido de artigo definido, ocorrendo o processo de substantivação; e (2) ocupa a posição sintática de núcleo do sujeito, implicando um valor nominal, próprio de um substantivo. 

Mas afirma-se, por outro lado, que caminhar é verbo na frase «Eu amo caminhar ...

Pergunta:

Em recente concurso público para professores no Brasil, uma das questões pedia ao candidato que identificasse entre as alternativas a frase em que se usava incorretamente o sinal de crase. De acordo com a banca examinadora, o erro, destacado, estaria em «Socorristas enfrentam condições meteorológicas adversas enquanto trabalham para liberar estradas e FORNECER AJUDA ÀS CERCA DE 3500 PESSOAS ainda presas em comunidade isoladas».

Em minha argumentação, tentei demonstrar que na frase em questão não haveria erro por tratar-se de um verbo bitransitivo (fornecer) regendo um objeto direto ("ajuda") e um indireto («as cerca de 3.500 pessoas»), sendo que este último, por exigir preposição, admitiria crase em «fornecer ajuda a» + «as cerca de», já que o "as" tratar-se-ia, em princípio, de um artigo definido feminino plural.

Tentando antecipar a contra-argumentação da banca, expliquei ainda que, caso a expressão «a cerca de» fosse iniciada por preposição, o sentido não seria de quantidade aproximada, mas de distância aproximada (p. ex., «a cerca de dez quilômetros») e que, fosse esse o caso, naturalmente não se admitiria crase. Contudo, para minha surpresa, a resposta ao meu recurso foi, literalmente:

«Decisão: Indeferido Argumento: Na frase da alternativa b, a expressão "às cerca de" está errada. A expressão é formada de preposição 'a' e não de crase; além disso, 'às' está no plural quando o termo posterior (cerca) está no singular.»

Apenas isso, sem mais.

Não acho que minha interpretação esteja incorreta. Ao ler passagens como «expressão formada de preposição e não de crase» e ao notar que consideraram um advérbio invariável ("cerca") como «termo no singular», fico com a impressão de que as sutilezas da questão escolhida talvez estejam além da simples aplicação de esquemas reducionistas como os que se vê em https://mundoeducacao.uol.com.br/gramatica/acerca-cerca-ha-cerca-de.htm, fonte que acredito ter inspirado o pr...

Resposta:

A crase é incontestavelmente correta: «fornecer ajuda a» + «as cerca de 3500 pessoas» = «fornecer ajuda às cerca de 3500 pessoas». O mesmo se dá no masculino: «fornecer ajuda a» + «os cerca de 3500 cidadãos» = «fornecer ajuda aos cerca de 3500 cidadãos». 

Note que o emprego do artigo definido (condicionado às regras de concordância nominal) é correto como forma de determinar o núcleo nominal da expressão formada por «cerca de» + «número (ou numeral)» + «substantivo».

Em breve consulta ao Corpus do Português, usando-se o código de busca «a os cerca de» e «a as cerca de», comprova-se irrefutavelmente a existência de milhares de construções semelhantes à da questão em tela – seja na variedade brasileira, seja na variedade europeia da Língua Portuguesa.

 Eis alguns exemplos:

(1) «Ali, contaram-lhe sobre o empenho das equipas, sobre os resultados alcançados, sobre os cuidados que prestam aos cerca de 15 mil utentes.» (Público)

(2) «Maduro criticou a oposição e os EUA por terem enganado a si mesmos e aos cerca de 40 militares que seguiram o levante de Guaidó.» (Veja)

(3) «Na manhã desta segunda-feira, o Papa Francisco pediu às cerca de 40 mil pessoas que se reuniram na praça...» (Expresso)

(4) «A iniciativa é voltada às cerca de 30 crianças que participam do Apadrinhamento Afetivo da fundação......

Pergunta:

Por favor, a frase:

«O técnico brasileiro chamou o novo talento para a seleção.»

O verbo chamar nesta frase é verbo transitivo direto e indireto?

O termo «para seleção» é objeto indireto? Ou qual a função sintática do referido termo?

Obrigado.

Resposta:

Sim, é um objeto indireto*.

Isso se confirma, por exemplo, no Dicionário prático de regência verbal, de Celso Pedro Luft, sob o verbete chamar

Segundo o autor, quando esse verbo tem o sentido de convocar, passa a exigir dois complementos: um direto e outro indireto.

Eis os exemplos que apresenta Luft:

(1) «O presidente chama o conselho (para uma reunião).»

(2) «... nunca nenhum juiz chamou-o para jurado.» (José Lins do Rego: Cunha)

Portanto, na frase «O técnico brasileiro chamou o novo talento para a seleção», o termo sintático «o novo talento» funciona como objeto direto e «para a seleção», como objeto indireto.
 
Sempre às ordens!
 

* Por ser brasileiro o consulente, a terminologia empregada está consoante a nomenclatura tradicional vigente empregada no ensino de gramática no Brasil.

Pergunta:

No livro 1000 erros de português da atualidade, o autor, o famoso gramático Luiz Sacconi, no item 854, intitulado "não faça isso, não", escreveu:

«Usa-se sempre vírgula antes do não, como nessa frase [não faça isso, não]. Outro exemplo: Eu nunca diria uma coisa dessas, não. *** Não vou lá, não.»

Gostaria de saber se a repetição do não ao fim da frase é realmente aceita pela gramática normativa; se sim, se ela precisa ser precedida imediatamente por vírgula, como diz o autor; se sim, por qual razão, em que obras esse uso aparece nos nossos melhores escritos e quais gramáticos, além do citado, abonam esse uso.

Além disso, a aceitação desse uso não estaria em conflito com o que ensinou o gramático Celso Cunha (2014, p. 442), no livro Gramática Essencial, ao escrever: «os [= os advérbios] de negação antecedem sempre o verbo: Não aparece vivalma. (V. DE CARVALHO) Não dormi, tampouco estive acordado. (DA COSTA E SILVA)»?

Obrigado.

Resposta:

De início, cumpre observar que a lição dada pelo gramático Celso Cunha não tem ligação nem semelhança com a estrutura de dupla negação, completamente correta e existente na norma culta escrita lusófona (há séculos!) e documentada por gramáticos normativos tradicionais.

Sobre as suas questões, acompanhe:

(1) A repetição do "não" ao fim da frase é realmente aceita pela gramática normativa?

Sim, é. Já se encontra isso em João Ribeiro, na sua Grammatica Portugueza (1889: 257). Em Julio Ribeiro, na sua Grammatica Portugueza (1911: 301). Em Alfredo Gomes, na sua Grammatica Portugueza (1913: 343). Em Maximino Maciel, na sua Grammatica Descriptiva (1914: 363). Em Domingos P. Cegalla, no seu Dicionário de dificuldades da língua portuguesa (2012: 268). Em Celso Cunha e Lindley Cintra, na sua Nova gramática do português contemporâneo (2017: 169). Certamente há outros gramáticos não elencados aqui a ensinar o mesmo.

(2) O "não" repetido precisa ser precedido imediatamente por vírgula; se sim, por qual razão?

Sim, é a prática escrita, o uso que determina a norma. A razão é a ênfase, o reforço, a intensidade atribuída ao sentido negativo que se deseja imprimir à frase.

(3) Esse uso aparece nos nossos melhores escritores?

Sim, tanto nos portugueses quanto nos brasileiros: Miguel Torga, Júlio Dinis, Almeida Garrett, Antonio Callado, José de Alencar, Coelho Neto, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Cecília Me...