Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«Os leitores têm a possibilidade de consultarem», ou «os leitores têm a possibilidade de consultar»?

Resposta:

Ambas as formas são aceitáveis, embora a do infinitivo não flexionado (ou impessoal) — «Os leitores têm a possibilidade de consultar» — seja a mais aconselhável.

Repare-se que se trata de um dos casos previstos para o uso do infinitivo impessoal (não flexionado), pois está precedido da preposição de e dependente de um substantivo — possibilidade —, cuja construção corresponde a um infinitivo passivo, tal como aconselham Cunha e Cintra com a seguinte indicação: «O infinitivo conserva a forma não flexionada […] quando é precedido da preposição de, em que o infinitivo depende de um substantivo [assim como de um adjetivo ou de um verbo] em construções em que corresponde a um infinitivo passivo» (Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2002, pp. 483).

De qualquer modo, os próprios gramáticos apercebem-se de que «o emprego das formas flexionada e não flexionada do infinitivo é uma uma das questões mais controvertidas da sintaxe portuguesa» (idem, p. 482), o que os levou a considerar que lhes «parece mais acertado falar não de regras, mas de tendências» (idem). Por isso, concluem, seguindo Said Ali, que se «trata de um caso de emprego seletivo, cuja escolha depende da intenção do emissor: «a escolha da forma infinitiva depende de cogitarmos somente da ação ou do intuito ou necessidade de pormos em evidência o agente da ação...

Pergunta:

Gostaria que me informassem sobre o verbo reaver, pois vejo escrito de várias formas.

Resposta:

O verbo reaver (sinónimo de «recuperar, haver de novo, recobrar») é um verbo defetivo, porque não tem a conjugação completa, o que dificulta o seu uso correto.

Como é formado com o verbo haver (re- + haver) — também defetivo e ocorrendo, com frequência, como impessoal (na aceção de «existir»), o que implica que seja usado na 3.ª pessoa do singular —, herdou muita da sua complexidade. É esta a razão pela qual, desde longa data, os vocabulários ortográficos da língua portuguesa (o da Academia das Ciências de Lisboa, de 1940, e o de Rebelo Gonçalves, de 1966) têm tido o cuidado de especificar a particularidade deste verbo, dando as seguintes indicações: «reaver, verbo. Conjugado apenas nas formas correspondentes às que no verbo haver têm v, regula-se graficamente, à parte a supressão do h, por esse verbo» (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, 1940) e «reaver, verbo. Conjugação igual à do verbo simples haver, mas com falta das formas correspondentes às que nesse verbo não têm v, a saber: 1.ª, 2.ª e 3.ª pessoas do singular e 3.ª pessoa do plural do presente do indicativo; todas as pessoas do presente do conjuntivo; 2.ª pessoa do singular do imperativo» (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, 1966).

Pergunta:

«Quem canta os males espanta», ou «Quem canta, os males espanta»? Há, ou não, vírgula? Caso não haja, a justificativa seria «quem canta» ser sujeito de «os males espanta»?

Resposta:

«Quem canta seus males espanta», sem vírgula, é a forma correta da frase.

Tal como a consulente sugere, a oração «Quem canta» é o sujeito da oração matriz – «seus males espanta», razão pela qual não se coloca a vírgula a separar os elementos constituintes da frase.

Trata-se de um caso de uma «frase complexa caracterizada por uma estrutura de subordinação, em que a oração [Quem canta] é um constituinte da oração superior, com uma função sintática própria»1— a de sujeito da oração matriz, o que se pode testar através da sua substituição pelo pronome indefinido alguém, o que permite verificar a natureza do constituinte da oração: «Alguém [quem canta] espanta os seus males.»

1 Ana Maria Brito e Inês Duarte classificam esta oração como relativa livre (Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Caminho, 2003, pp. 675-676).

Pergunta:

Como está correto escrever: adoramos-vos, ou adoramo-vos? Já agora, qual a razão que nos leva a escrever adoramos-vos, e não amamos-vos?

Resposta:

Adoramos-vos e amamos-vos são as formas corretas, porque só se omite o -s final da desinência -mos «em todas as primeiras pessoas do plural dos verbos reflexivos ou pronominais, quando o pronome é enclítico [depois do verbo], em virtude de uma antiga assimilação à nasal inicial do pronome seguinte -nos» (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 17.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 410).

Portanto, só nos casos em que o pronome enclítico é -nos é que se omite o -s final da 1.ª pessoa do plural, como, por exemplo: Amamo-nos, adoramo-nos, amarmo-nos, adoremo-nos.

Pergunta:

Podiam-me dizer qual é a diferença legal e semântica entre uma ordem (exemplo: «Ordem dos Advogados») e uma câmara (exemplo: «Câmara dos Solicitadores»), no que respeita à regulação do exercício das profissões liberais?

Resposta:

Recorrendo aos dicionários, apercebemo-nos de que o termo ordem designa «associação de pessoas que exercem a mesma profissão e que estão sujeitas a um regulamento (Ordem dos Médicos; Ordem dos Advogados, Ordem dos Engenheiros» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2010, e Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, 2001) ou «classe de pessoas que exercem uma profissão e estão legalmente sujeitas a determinados princípios regulamentares» (Dicionário da Língua Portuguesa, de António de Morais Silva, 1980). Ordem está, também, ligada ao domínio da religião, sobretudo porque é a palavra usada para designar uma «regra monástica ou comunidade religiosa»: Ordem de Cristo, Ordem dos Templários, Ordem dos Pregadores, Ordem de S. Francisco, etc.).

Por sua vez, a palavra câmara é utilizada para designar as assembleias que têm como objetivo o interesse comum. Repare-se nas definições dos dicionários: «assembleia regularmente constituída que se ocupa dos assuntos de interesse comum (como é o caso da Câmara de Comércio, «instituição destinada a discutir os acontecimentos económicos e a advogar junto dos governos a defesa dos interesses dos seus associados»); «assembleia legislativa [uma vez que a câmara dos deputados é a Assembleia da República e o Parlamento britânico é constituído pela câmara baixa (dos comuns) e pela câmara alta (dos lordes)]. E mesmo câmara municipal ou câmara designa o «órgão da administração local que corresponde ao concelho ou ao município», o «conjunto de vereadores de um município» para além de corresponder ao «local onde funcionam os serviços desse órgão».

Se tivermos em conta o facto de o termo câmara estar associado à ideia (e ao princípio) de «interesse comum», inferimos que não é por acaso que...