Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Ainda acerca da polémica causada por Dilma Roussef, que exigiu que a tratassem por "presidenta", julgo ter lido, algures, que as palavras terminadas em e se mantêm inalteradas em função do género. Assim, «o doente»/«a doente», «o tenente»/«a tenente», «o docente»/«a docente». No entanto, sou confrontado, muitas vezes, com «a infanta». Trata-se de uma excepção, ou de uma situação diferente?

Resposta:

De facto, o caso de infanta é considerado uma exceção (ou um caso particular de formação de feminino dos substantivos/nomes terminados em -nte) por Cunha e Cintra, na sua Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Sá da Costa, 2001, p. 195).

Segundo a obra citada, e tal como o consulente refere, «os substantivos terminados em -e [não incluídos os que designam títulos de nobreza e dignidades que formam o feminino com as terminações -esa, -essa e -isa: abade-abadessa, conde-condessa, duque-duquesa, sacerdote-sacerdotisa] são geralmente uniformes» (idem).

Estes gramáticos assinalam ainda a particularidade dos substantivos finalizados em -nte, «de regra originários de particípios presentes e de adjetivos uniformes latinos» (idem), razão pela qual «essa igualdade formal para os dois géneros é quase que absoluta» (idem). Alertam-nos, também, para a realidade de «um pequeno número que, à semelhança da substituição -o (masculino) por -a (feminino), troca o -e por -a de regra», entre os quais se encontra infante. Assim: elefante-elefanta, governante-governanta, infante-infanta, mestre-mestra, monge-monja, parente-parenta.

Em observação, há, ainda, a indicação de que «os femininos giganta (de gigante), hóspeda (de hóspede) e presidenta1 (de presidente) têm ainda curso restrito no idioma» (idem).

Pergunta:

José Maria Relvas escreve: «Para mais facilmente conhecermos se uma palavra é um substantivo, basta pôr antes dela algumas dessas palavras: um, uma, uns, umas, o, a, os, as. Qualquer palavra pode ser um substantivo, desde que essa palavra esteja substantivada por alguma das palavras um, uma, uns, umas, o, a, os, as. Assim: não, sim, são advérbios, mas, se dissermos: «o não», «o sim», já são substantivos; comer, cantar, são verbos, mas se dissermos: «o comer», «o cantar», já são substantivos; etc.» (Gramática Portuguesa – 2.ª Edição revista, actualizada e aumentada, Europress, 2001, pág. 21).

Realmente, quando acrescentamos os artigos, quaisquer que sejam, a uma palavra, independentemente do grupo ou classe gramatical, passa a substantivo. Por isso, os grandes linguistas aconselham que não se deve dizer o seguinte: «O peixe é para o almoço» (diferente de: «O peixe é para almoço»). Naquela, está contida a ideia de «o peixe» ser dado para o «almoço», como se este fosse um (ou uma) personagem, o que não corresponde à verdade, ao passo que, nesta, há a ideia de finalidade para a qual se destina o peixe.

Gostaria, entretanto, de saber se «o sim», «o não», «o comer», «o cantar» são substantivos comuns, ou concretos. Creio que sejam comuns, porque se escrevem em minúscula.

Resposta:

Em primeiro lugar, não podemos deixar de assinalar a nossa estranheza pela afirmação de que «os grandes linguistas aconselham que não se deve dizer o seguinte: "O peixe é para o almoço" (diferente de: "O peixe é para almoço"). Naquela, está contida a ideia de «o peixe» ser dado para o «almoço», como se este fosse um (ou uma) personagem, o que não corresponde à verdade, ao passo que, nesta, há a ideia de finalidade para a qual se destina o peixe». Talvez a estrutura «é para almoço» (sem o artigo definido) na frase apresentada seja uma particularidade do português de Angola, mas em Portugal prefere-se «é para o almoço», com artigo definido.

Por outro lado, o artigo definido não é marca de concretude, mas, sim, de identificação de um referente, muitas vezes em consequência de determinada entidade já ter sido apresentada em discurso. Quando se diz «Era uma vez um peixe que vivia entre as algas. Um dia, o peixe...», o artigo definido marca, na segunda frase, um tópico que foi apresentado anteriormente em discurso, na primeira frase.

Tal como o consulente referiu, os casos apresentados são ocorrências de palavras substantivadas. Trata-se, portanto, de situações especiais, em que, no contexto em que se inserem, os advérbios sim (de afirmação) e não (de negação), assim como os infinitivos dos verbos comer e cantar, são usados como se fossem substantivos1. Portanto, nessas situações, o valor de sim é o da circunstância ou da ideia acessória a afirmação («o sim» = «o consentimento, a aprovação, a afirmação, a concordância»), assim como o de não equivale a negação, a recusa («o não» = «a negação, a recusa»).

São casos de conversão dos advérbios em substantivos.

O mesmo se passa com  «...

Pergunta:

Na sequência da resposta dada à minha dúvida sobre uma pergunta do exame nacional de Português do 12.º ano, que muito agradeço, devo dizer que não creio que as minhas dúvidas tenham sido bem endereçadas.

Eu não duvido de que a opção D esteja, também ela, correcta. Está, aliás, como bem foi dito na resposta em linha com a intenção geral da autora do texto. Acontece que a opção A me parece possível. Isto a menos que o verbo "coincidir" — e é este o epicentro da minha dúvida, perdoe-se-me a parca imaginação da imagem —, a menos que o verbo "coincidir", dizia, retenha pouco da sua carga etimológica (não sei que lhe chame; legado talvez se adeque). Pois, se é formado pela partícula "co" e pelo verbo "incidir", descreverá, suponho, uma incidência em comum. E essa incidência verifica-se; tanto nas leituras críticas que defendem Fernão Mendes Pinto quanto nas que o repreendem.

Porque todas parecem tratar da repreensão de que ele é alvo por relatar acontecimentos falsos.

Resposta:

Uma vez que o consulente se baseia no valor do verbo coincidir como argumento para defender a sua posição de que está correta a opção A da pergunta 1.1. do Grupo II da versão 2 da Prova Escrita de Português de Exame Nacional do Ensino Secundário, não podemos deixar de analisar a respetiva etimologia e valor.

Segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, coincidir deriva «do latim escolástico coincidĕre, à letra: "cair juntamente"», provavelmente pelo francês coïncider

Por outro lado, o Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa (1964), de Silveira Bueno, indica que o verbo coincidir, «do latim medieval coincidere, de co+incidere» teve, na sua formação (ainda na do termo latino), o elemento co-1, o que explica os significados que lhe são atribuídos «encontrar, ser idêntico em tamanho, acontecer».

Por sua vez, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa (2010), da Porto Editora, aponta os seguintes significados a coincidir: «ajustar-se exatamente; acontecer ao mesmo tempo; concordar».

Ora, se atentarmos nas frases que são objeto de análise — «11. As leituras críticas da obra Peregrinação coincidem no que diz respeito: (A) à repreensão de que o autor é alvo por apresentar acontecimentos falsos» — e as relacionarmos com o facto de o verbo coincidir significar «concordar», «ajustar-se exatamente» ou «ser idêntico», aperceber-nos-emos de que a própria autora do texto não concorda com a leitura crítica de «repreensão de que é alvo por apresentar acontecimentos falsos». O texto revela que as várias leituras críticas sobre a obra Peregrina...

Pergunta:

Gostava de saber a origem do meu apelido, Caronho.

Resposta:

Da bibliografia específica consultada1, somente o Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, regista o nome próprio Caronho como apelido2 que se formou a partir de uma «antiga alcunha. Por caronha = caroço».

1 José Leite de Vasconcelos, Antroponímia Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional, 1928; Manuel de Sousa, As Origens dos Apelidos das famílias Portuguesas, Sporpress, s. d.

2 Conforme atestado pela Lista de Telefones de Lisboa e pelo Diário de Notícias.

Pergunta:

Esse trecho  do poema de Cecília Meireles pode ser considerado como uma prosopopeia?

«E as borboletas sem voz

Dançavam assim veludosamente.»

Resposta:

Não teremos dúvidas da presença da proposopeia1 em «as borboletas [...] dançavam», se tivermos em conta que prosopopeia [«do grego propsopopóia, "personificação, pelo latim prosopopeia- (Sebastião Cherubim, Dicionário de Figuras da Linguagem, São Paulo, Pioneira, 1989, pp. 55-56)] se trata de uma figura de pensamento dentro das figuras de expressividade cujo «processo consiste em atribuir vida, ou qualidades humanas, a seres inanimados, irracionais ou mortos» (João David Pinto Correia, «A expressividade na fala e na escrita», in Falar melhor, Escrever melhor, Lisboa, Selecções do Reader´s Digest, 1991, p. 499), uma vez que é atribuída a um ser irracional — as borboletas — a qualidade/capacidade humana de dançar.

De qualquer modo, para além da possibilidade da prosopopeia, não há dúvida de que há nesses versos a presença da metáfora, uma vez que o sujeito poético faz a fusão de duas realidades — a do voo (das borboletas) e a da dança — que se assemelham (movimento harmonioso das asas e leveza do voo = movimento harmonioso dos corpos e leveza da dança), sem colocar o termo de ligação/comparação como (o voo das borboletas era como uma dança, como se dançassem), sugerindo a imagem de um bailar natural e aprazível (sem música). A evocação sugestiva das sensações - «sem voz» (auditiva, por contraste) e «veludosamente» (táctil) - poder-nos-ão levar a afirmar que nesses versos se insinuam, também, marcas de sinestesia.

No entanto, se nos basearmos na perspetiva do E-Dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia, e do Dicionário de Figuras da Linguagem<...