Embora o texto do Grupo II da Prova de Escrita de Português, do Exame Nacional do Ensino Secundário, de Ana Paula Laborinho, tenha como título «O Livro dos Fingimentos» (in Jornal de Letras, Artes e Ideias, de 29/12/2010 a 11/01/2011) — formulação que teve como referência o comentário (pouco conveniente) feito à Peregrinação pelo jesuíta João Rodrigues, antigo companheiro de Fernão Mendes Pinto, na sua obra História da Igreja do Japão —, da sua leitura depreende-se que o objetivo da autora é precisamente desconstruir essa imagem negativa de relato de fingimento passada pelo historiador jesuíta sobre a narrativa de Mendes Pinto, valorizando o recurso à ficção e à recriação da realidade.
Importa ter em conta que a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto não é um documento histórico nem foi feito com essa intenção, pois está construído na 1.ª pessoa, o que retira qualquer possibilidade de se pensar que se poderia tratar de um texto fundado na objetividade e na imparcialidade das ações narradas e dos universos descritos. Esta obra foi escrita por um narrador (não por um historiador ou cronista da época) a partir das memórias das suas vivências e das suas viagens pelo Oriente, em que a subjetividade interfere na realidade observada e vivida, em que o olhar é fruto do sentir, em que as emoções e os sentimentos misturam verdade e ficção, o real e o imaginário, sem que o texto perca o seu valor. Não nos podemos esquecer de que se trata de um texto literário, de um relato de viagem e de aventura, e não de um texto histórico.
Por isso, desde o primeiro parágrafo se verifica a reabilitação da obra, enquanto texto literário, pois a autora vai evidenciando os argumentos em que contraria a ideia de «obra da mentira» veiculada por «poderosas vozes contra a veracidade do relato, sendo exemplar o comentário [...] de João Rodrigues como um "livro de fingimentos"» (linhas linhas 16 a 26), sem deixar de mostrar a presença necessária da ilusão e do «excesso de aventuras» (linha 5), de que são exemplo os seguintes excertos:
– «A Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, [...] é um daqueles textos deslumbrantes que surpreende pela capacidade de interpelar o leitor [...] pese embora o excesso de aventuras» (1.º parágrafo);
– «[...] mas o comentário de João Rodrigues sublinha também o entendimento de que se tratava de um texto ficcional, quer dizer, uma recriação da experiência, que usa a memória — com tudo o que ela possui de ilusão — para recuperar acontecimentos que ocorreram muitos anos antes» (linhas 25 a 28);
– «A obra apresenta-se, assim, como singular no conjunto dos relatos de viagem» (linha 29);
– «Enquanto a grande maioria desses relatos tem como razão da escrita o desvendamento dos novos mundos e gentes e as dificuldades e incertezas da navegação, o relato de Fernão Mendes apresenta-se como uma autobiografia onde a verdade se enovela por entre os meandros de uma consciência» (linhas 33 a 35).
Perante estes argumentos, não nos parece haver razões para dúvida de que a opção que complete a frase «As leituras críticas da obra Peregrinação coincidem no que diz respeito ao reconhecimento do caráter aventuroso dos acontecimentos narrados» (opção D da 2.ª versão da prova). Aliás, a ideia de relato/narrativa de aventura atravessa todo o texto.