Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Será que me podem explicar o significado da expressão «bodas vermelhas»?

(É título de livro e faz parte da letra de um fado de Camané.)

Resposta:

«Bodas vermelhas» surge no primeiro verso do poema Estranho Fulgor, de Pedro Homem de Mello, poema este que, por sua vez, está inserido no seu livro Bodas Vermelhas (1947). Este poema, Estranho Fulgor, constitui a letra do fado (com o mesmo nome do poema) cantado por Camané, de que o consulente nos fala.

Como a expressão «bodas vermelhas» não se encontra dicionarizada, isso indica-nos que não faz parte daquele leque de designações especiais associadas à palavra boda, identificativas da quantidade de cada cinco anos que se comemoram, tais como: «bodas de madeira — 5 anos; bodas de estanho — 10 anos; bodas de cristal — 15 anos; bodas de porcelana — 20 anos; bodas de prata — 25 anos; bodas de pérola — 30 anos; bodas de coral — 35 anos; bodas de esmeralda — 40 anos; bodas de rubi — 45 anos; bodas de ouro — 50 anos; bodas de brilhante — 75 anos» (Deonísio da Silva, De onde Vêm as Palavras, Frases e Curiosidades da Língua Portuguesa, São Paulo, Ed. Mandarim, 1997, p. 44).

Fazendo parte de um poema, de um texto literário, só através da sua análise se poderá procurar descodificar o sentido de «bodas vermelhas». Trata-se, decerto, de uma metáfora usada pelo sujeito poético para representar uma determinada ideia, criando, assim, uma imagem do que pretendia dizer.

De qualquer modo, e antes de entrarmos na análise dessa expressão no poema, importa conhecer a origem e o significado de boda: «do latim vota, plural de votum, voto, promessa. Ao contrário de outras línguas neolatinas, como o francês e o italia...

Pergunta:

Apresento ao Ciberdúvidas os meus agradecimentos pela ajuda na interpretação de Mau Tempo no Canal, de V. Nemésio.

Na continuação da vossa estimada resposta n.º 26 748, venho pedir o favor de me auxiliarem nas seguintes palavras e expressões contidas na obra:

«Mesa de pé de burro» — 2.ª pág., Cap. XII.

«Fazer marrajanas/marrajana» — 5.ª e 6.ª pág. do mesmo cap.

«Reseima» — 6.ª pág. do mesmo cap.

«Travar-lhe do braço» — 4.ª pág. do Cap. XIV.

«Cachimbeta» — 3.ª pág. do Cap. XVI.

Obrigado.

Resposta:

Tal como já foi dito na resposta N.º 26748, os termos e as expressões dos falantes açorianos, muitas vezes registados de modo a representar a sua pronúncia peculiar, tornam-se um entrave à compreensão do seu significado e, quantas vezes, dificultam a interpretação do sentido de toda a frase.

Das expressões que o consulente, desta vez, nos apresenta, destaca-se uma palavra que, para nós, é bastante invulgar, mas em que detectamos algo de negativo, de desagradável, pois surge em contextos em que parece estar associada a motivo de crítica — marrajanas presente em dois trechos do cap. XII: no discurso irónico de quem passa «na rua de Jesus e visse luz na vidraça [do escritório do «saguão» de Januário Garcia], referindo-se-lhe assim: «Lá está o Garcia a fazer marrajanas…» (Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, Lisboa, Relógio d’Água, 2004, cap. XII, p.143) e, também, no final do capítulo, quando o narrador recria o olhar/o pensamento de Januário sobre os advogados da Horta:«no cível, o dr. Luís da Rosa — não lhe ficando atrás, para uma marrajana, o espertalhão do Leal». Como justificativo do atributo de «espertalhão», uma marrajana parece traduzir algo não muito sério nem honesto. Ora, o termo marrajana (sub. f.)  significa precisamente «aldrabice», segundo o estudo de Maria Alice Borba Lopes Dias sobre a linguagem da ilha da Terceira (Maria Alice Borba Lopes Dias, Ilha Terceira, Estudo da  Linguagem e Etnografia,1982, p.466).

Não encontrámos nessa mesma obra referência a nenhum dos outros termos e expressões que nos coloca, talvez por não serem considerados pela autora como regionalismos açorianos. Resta-nos, portanto, procurar descodificar o seu sentido a partir do contexto em que surgem.

Relativamente a mesa ...

Pergunta:

Gostaria de um comentário sobre a expressão «ao pé da letra». Seu significado é «literalmente», mas é uma figura de linguagem? Seria catacrese, ou metáfora?

Morfologicamente, posso classificá-la como locução adverbial?

Resposta:

«Ao pé da letra» e «à letra» são expressões idiomáticas que significam, não somente, «literalmente», como a consulente indicou, mas também «rigorosamente, estritamente», ou ainda, dito de uma forma mais familiar e popular, «à risca» (António Nogueira Santos, Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas, Lisboa, Sá da Costa, 1990, p. 225).

Sendo uma expressão idiomática (idiomático, adj. «adaptação formal do gr. idiomatikós, «particular, especial», José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, vol. III, Lisboa, Livros Horizonte, 1987, p. 258), «própria de um idioma», ao pé da letra tem um estatuto de especificidade, de registo particular e especial da nossa língua, pois é uma expressão «que funciona como um todo e que normalmente não pode ser entendida de forma literal» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2004).

Sobre a especificidade das expressões idiomáticas, importa lembrar o que nos diz Lindley Cintra sobre o assunto: «formas ou expressões que se fixaram [em todas as línguas] e são correntemente empregadas num sentido que se afasta muito do literal, o que as torna dificilmente, se é que não totalmente impossíveis de serem traduzidas literalmente. […] A sua origem, o processo de associação de ideias que está na sua base está geralmente ligado a um processo de transposição de sentido, de transposição de um sentido literal por um figurado, metafórico, que raramente é possível reconstituir com rigor. Expressões que nasceram num momento particularmente criativo da linguagem em que a função emotiva ou expressiva predominava sobre as outras foram especialmente bem recebidas, aceites e expandidas com um total ou parcial esque...

Pergunta:

O verbo "sobreproteger" existe? E, em caso afirmativo, escreve-se com, ou sem hífen?

Resposta:

Da pesquisa que fizemos em vários dicionários, dos mais recentes aos mais antigos (Dicionário da Língua Portuguesa 2009, da Porto Editora; Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2004; Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001; Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, 2001; Novo Aurélio, Dicionário da Língua Portuguesa Século XXI, 1999; Michaelis: Dicionário da Língua Portuguesa, 1998; Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, 1981; Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa, de António Morais e Silva, 1980; Grande Diccionario Portuguez, de Dr. Fr. Domingos Vieira, 1874) e em obras de referência sobre o vocabulário e a ortografia do português europeu (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, 1940; Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves, 1947; Vocabulário da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves, 1966; e, também, o recentíssimo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2009) não encontrámos qualquer registo do verbo sobreproteger, o que nos pode levar a concluir que tal termo, se não se encontra dicionarizado, não parece estar legitimado, dando o seu lugar a superproteger.

Pode parecer estranho, porque nos apercebemos de que se optou por formar uma palavra com o prefixo super-, que é precisamente o étimo (latino) de sobre — «sobre-, elemento de composição, do lat. super» (José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, 4.ª ed., V, Lisboa, Livros Horizonte, 1987, p. 215), preferindo-se o «elemento de composição culta […], hoje muito e...

Pergunta:

Um dos Herodes foi chamado Antipas. Qual é a pronúncia correta? É o vocábulo paroxítono, ou proparoxítono?

Muito grato.

Resposta:

Tanto o Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa (José Pedro Machado, ob. cit., 3.ª ed., Lisboa, Livros Horizonte, 2003) como o Vocabulário da Língua Portuguesa (F. Rebelo Gonçalves, ob. cit., Coimbra, Coimbra Editores, 1966) e o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa (1940), registam esse nome bíblico da seguinte forma — Ântipas, o que nos indica que se trata de uma palavra proparoxítona (esdrúxula), com acento circunflexo na primeira sílaba. Rebelo Gonçalves, decerto por se dar conta do uso da forma Antipas, sem acento gráfico, tem o cuidado de esclarecer que é «inexacta a acentuação Antipas (parox.)» (ob. cit., p. 86).

No entanto, a Bíblia Sagrada em Português Corrente Tradução interconfessional do hebraico, do aramaico e do grego (Lisboa, Difusora Bíblica, 1999) regista Antipas sem o acento circunflexo na primeira sílaba, como podemos verificar na nota de rodapé da p. 1321 — «Herodes Antipas, filho de Herodes, o Grande, tetrarca, ou seja, governador da Galileia, de 4 a. C. a 39 d. C.» (Lucas, 3) —, assim como no índice analítico, em que, para Herodes, surgem quatro alíneas: «Herodes (N. T.) a) rei da Judeia:Mt 2,1 – 22, Lc 1,5); b) Antipas, governador da Galileia: Mt 14, 1-10; Mc 6,14-27; 8,15; Lc 3,1-19; 9,7-9; 13,31; 23,6-12; Act 4,27; 13,1.; C) Agripa I: Act 12,1-6; 11;19-23.; D) Agripa II, ver Agripa» (idem, p. 1604).

Tratando-se esta Bíblia de uma tradução feita por especialistas nas línguas eruditas (hebraico, aramaico e grego) e, naturalmente, em português, estranha-se que a grafia de Antipas divirja da que é indicada nas obras citadas anteriormente. A leitura que fazemos é que esta variante gráfica parece re...