Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
67K

Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Escreve-se "Cancun", ou "Cancún", a cidade turística mexicana?

Obrigado.

Resposta:

O nome de tal cidade turística mexicana não se encontra registado em nenhum dos vocabulários ortográficos da língua portuguesa, tanto nos que se referem às mudanças ortográficas mais antigas — como é o caso do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (1940), da Academia das Ciências de Lisboa (que tem como base a  Reforma Ortográfica de 1911, a Portaria n.º 2553, de 29 de Novembro de 1920, e o Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro, tornado oficial pela Portaria n.º 7117, de 27 de Maio de 1931) e o do Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), de F. Rebelo Gonçalves (em conformidade com o  Acordo Ortográfico de 1945) –, como nos três mais recentes, realizados a partir do Acordo Ortográfico de 1990: o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (2009), da Academia Brasileira de Letras; o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (2009), da Porto Editora; e o Vocabulário Ortográfico do Português (2010), da responsabilidade do Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), que é explícito na resposta à pesquisa que realizámos: «O topónimo Cancun não se encontra registado na MorDebe

É possível fazer-se o aportuguesamento da palavra espanhola Cancún, como se pode verificar no texto sobre essa cidade na Wikipédia, que regista as formas "Cancun" e "Cancum": «Cancun, também chamada de Cancum, é uma cidade litorânea que fica na costa do estado de Quintana Roo no México, em uma península que se tornou um dos centros turísticos mais importantes do mundo.»  Embora nenhuma dessas formas se tenha tornado de uso corrente, reconheça-se "Cancum" como aport...

Pergunta:

É comum nas histórias em quadrinhos vermos o uso da repetição de sinais de pontuação como forma de realçar e dar força dramática aos textos. Por exemplo, vários pontos de exclamação ou pontos de interrogação indicando espanto, surpresa etc. Às vezes esses dois sinais são usados juntos: «Como??!» Geralmente são em número de três. No momento, não lembro de ter visto esse recurso usado na literatura mais "tradicional". Por isso, pergunto se a gramática trata disso, e particularmente se há regras quanto ao número de repetições dos sinais.

Resposta:

A Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Sá da Costa, 2002, pp. 652-654), de Celso Cunha e Lindley Cintra, trata das situações em que se verificam mais do que um sinal de pontuação, que são: 

— quando surgem o ponto de interrogação e as reticências, o que marca uma situação em que «a pergunta envolve dúvida», como nos seguintes exemplos:

«— Quem está aí?...» (Branquinho da Fonseca, B, 86)
«— Então?... que foi isso?... a comadre?...» (Artur Azevedo, CFM, 86) 

 

— quando ocorrem combinados o ponto de interrogação e o ponto de exclamação, para evidenciar  as «perguntas que denotam surpresa, ou  aquelas que não têm endereço nem resposta», como se pode verificar nas frases seguintes:

«— Ah, é a senhora?! Pois entre, a casa é sua…» (Aníbal Machado, HR, 86)
«— Quem é que não conhece Coimbra?!!! (Branquinho da Fonseca, B, 18) 

      
— quando a entoação é predominantemente interrogativa, o ponto de interrogação antecede o ponto de exclamação; quando é mais sensível o tom exclamativo, o de exclamação precede o de interrogação, como no excerto: 

«Ah! Minha Nossa Senhora, para que Felícia veio falar dessas histórias agora de noite!?» (Coelho Netto, OS, I, 926) 

 

— quando a combinação do ponto de interrogação e de exclamação vem seguida ou antecedida de reticências, o que lhe acrescenta  uma nota de incerteza:

«— Estás a ver se disfarças?!...» (Alves Redol, F

Pergunta:

Nos versos «Os seus irmãos construindo vilas e cidades/Cimentando-as com o seu sangue», qual é a figura de estilo presente? Estou na dúvida entre metáfora ou hipérbole.

Obrigada.

Resposta:

Na frase — «Os seus irmãos construindo vilas e cidades/Cimentando-as com o seu sangue» — estão presentes as seguintes figuras de estilo/expressividade:

— a hipérbole, na expressão «construindo vilas e cidades», uma vez que é aí evidente «a amplificação […] por excesso» da construção realizada pelas personagens referidas, recurso usado «de forma a provocar no leitor estranheza para além da realidade credível» (E-Dicionário de Termos Literários).

— a enumeração em «vilas e cidades», pois há o cuidado de registar «uma sucessão de elementos dispostos segundo uma determinada linha de sentido» (João David Pinto Correia, «A Expressividade na Fala e na Escrita», in Falar melhor, Escrever melhor, Lisboa, Selecções do Reader´s Digest, 1991, p. 498) — do maior para o mais pequeno;

— a metáfora em «cimentando-as com o seu sangue», em que se verifica a fusão de duas realidades sem o termo de ligação/comparação (cimento e sangue = o sangue é como o cimento), pois, pela aproximação do sentido das duas palavras, o sujeito poético desloca o valor do esforço e do sofrimento (simbolizado pelo sangue) para o do cimento, uma vez que as cidades e as vilas, que os irmãos fizeram, foram construídas com esforço e sofrimento.

 

Pergunta:

Quando alguém não entende um assunto, como é que se deve dizer: «tu não atinges», ou «tu não inteliges»? Ou são ambas as construções admissíveis?

Desde já vos agradeço.

Resposta:

O verbo inteligir (assim como inteligenciar) só se encontra registado no recente Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras (2009), do que se depreende que é uma forma do português do Brasil.

No entanto, não está atestada por nenhum dos dicionários de língua portuguesa1 que consultámos, mesmo nos de edição brasileira, nem pelos vocabulários ortográficos2 de edição portuguesa, o que poderia deixar-nos reservas quanto à sua utilização, pelo menos, em Portugal. No entanto, encontramo-lo em textos de temática filosófica, como acontece na passagem:

«O que significa, pois, pensar, em termos bonaventurianos? Ora, responde o nosso Autor: “Pensar nada mais é do que o que é, o que se diz, [ou seja] conhecer [inteligir]”» (António Rocha Martins, Teologia e Metáfora em Boaventura, Covilhã, Universidade da Beira Interior, 2009)

O autor deste extracto esclarece também em nota:

«32I Sent. d. 8, q. 2 (I 154a): “[. . . ] et hoc cogitare nihil aliud est quamquid est, quod dicitur, intelligere”. (Sublinhado nosso). Costuma traduzir-se intelligere por “entender”, reservando-se “conhecer” para o termo cognitio. Vd. A. BLAISE, Dictionnaire latin-français des auteurs chrétiens, Turnhout, Brepols, 1954, p. 461: art. intelligo. Preferimos manter “inteligir”, ou vertê-lo por “conhecer”, pois nos parece este termo corresponder mais adequadamente ao sentido e desenvolvimento do texto bonaventuriano. Isso será particulamente manifesto no contraste entre intelligere e

Pergunta:

Qual a forma correcta para o adjectivo relativo a Estado Novo: "estadonovista", ou "estado-novista"?

Resposta:

Não encontrámos registo, nos dicionários que consultámos1, de nenhum adjectivo formado a partir de Estado Novo.

De qualquer modo, na medida em que o sistema morfológico português permite formas (que nem sempre os falantes aceitam, e vice-versa), o adjectivo estado-novista poderá ser encarado como um neologismo, razão pela qual é aconselhável que essa particularidade seja referida, sempre que a consulente o utilizar, uma vez que não está atestado pelos dicionários nem pelos vocabulários ortográficos de língua portuguesa2 (por exemplo, os realizados a partir dos acordos de 1945 e o de 1990).

1 Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora (2008); Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa (2001); Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001); Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa, de António de Morais e Silva (1987); Michaelis: Dicionário da Língua Portuguesa (1998).

2 Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa (1940); Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1947), de F. Rebelo Gonçalves (Coimbra, Atlântida Editora); Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), F. Rebelo...