Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Como se identifica o discurso hiperbolizado na publicidade?

Resposta:

Se se fala de um discurso hiperbolizado (quer seja publicitário ou qualquer outro), é porque se trata de um discurso em que a hipérbole predomina. Por isso, basta termos em conta o que caracteriza a hipérbole, enquanto recurso que joga com o exagero, como «figura de pensamento que consiste na amplificação crescente, quer por excesso quer por defeito, de um determinado objecto, sentimento ou ideia, de forma a provocar no indivíduo estranheza para além da realidade credível» (E-Dicionário de Termos Literários).

Várias são as técnicas para se criar a hipérbole nos discursos informais e nos literários, verificando-se que «este recurso expressivo se encontra abundantemente representado tanto na linguagem corrente, através da utilização de determinados prefixos como super-, ultra-, do abuso de superlativos e do uso continuado de determinadas expressões coloquiais como “estar morto de sede”/“chorar rios de lágrimas”, entre muitas outras, como na linguagem literária, destacando-se, neste caso, na retórica, onde a hipérbole tem como função despertar no público afectos partidários, e na poesia, género no qual pretende a criação afectiva de imagens que ultrapassem a realidade conhecida» (idem).

Pergunta:

Gostaria de saber que figura de retórica/tropo se encontra nesta frase:

«O castigo deveria ser pesado e ter o braço longo.»

Considero que não se trata de uma simples personificação, mas que se poderá ali encontrar uma metáfora, tendo em conta a dimensão semântica que se pretende atingir.

Obrigada pela atenção.

Resposta:

De facto, numa primeira leitura, parece tratar-se de uma personificação, sobretudo devido à última parte — «ter o braço longo» —, referindo-se ao castigo. Mas, na frase que nos apresenta, o que sobressai, na primeira parte, é o valor do adjectivo «pesado» para caracterizar «castigo», o que nos remete para a hipálage, pois estamos perante um caso de adjectivação sugestiva que valoriza a impressão e a percepção imediata, em que «o efeito criativo é conseguido pela originalidade da construção, sem ambicionar outra representação mental da realidade a não ser aquela relacionada com o fenómeno psicológico ou com a ilusão de óptica» (E-Dicionário de Termos Literários).

A hipálage joga com a transposição de qualidades sugeridas pelo adjectivo, tirando partido da sensação, do efeito que provoca no leitor. Distingue-se da «personificação, da sinestesia ou de outra figura de pensamento porque a primeira é concebida num segmento sintáctico que torna explícita a intenção estilística da transposição, não atribuindo novos significados às palavras» (idem). Assim, neste caso, verificamos que nos encontramos na presença de «processo de valorização estilística que consiste na atribuição a um objecto de uma característica que, na realidade, pertence a outro com o qual está relacionado. Transposto na frase, o adjectivo aparece muito frequentemente nesta construção, ligando ao objecto uma característica moral pertencente ao sujeito [ex.: «o silêncio desaprovador dos meus colegas» (A Queda dum Anjo, de Camilo Castelo Branco)].

Pergunta:

A palavra carreira é uma palavra da família de carro?

Resposta:

Carreira parece, efectivamente, pertencer à mesma família de carro, por ter sido formada por derivação a partir de um radical comum às duas palavras.

Se tivermos em conta a etimologia de carreira, verificamos que esta palavra deriva «do latim carrāria (via), “caminho para carros”» (José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, vol. II, Lisboa, Horizonte, 1987, p. 84) e que, por sua vez, carro vem «do latim carru-, “galera, carro, carroção”» (idem, p. 85).

Apercebemo-nos, no entanto, de que nos encontramos perante um caso de fronteira, pois o significado original da palavra carreira aponta para a ideia de «caminho», «estrada» por onde passavam os carros, valor este que ainda se observa nos casos como «carreira profissional», «carreira diplomática», «carreira militar», «o topo da carreira», «carreira da virtude», em que está implícito o sentido de «percurso profissional ou de vida».

Pergunta:

É correcto dizer «o que é provável» + infinitivo, ou deve dizer-se «o que é provável que» + conjuntivo?

Muito obrigada.

Resposta:

As duas construções são possíveis, como podemos verificar em frases do tipo1

«O que é provável que se faça...»
«O que é provável que eles pensem…»
«O que é provável fazer-se…»
«O que é provável pensarem…»
 

As gramáticas explicam as duas construções, dizendo-nos que as tradicionalmente chamadas expressões impessoais ou, noutra perspectiva, as expressões que têm um núcleo adjectival «que expressam dúvida, volição, necessidade, possibilidade, obrigação, permissão» (Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Caminho, 2003) podem seleccionar:

— uma oração finita de conjuntivo (idem, p. 602), o que se pode observar nos seguintes exemplos: 

«É duvidoso que a Maria esteja em casa.»
«É possível que os meus amigos saiam à noite.»
«É possível/provável que o João não venha à festa.»
 

— «completivas não finitas […], apresentando o verbo no infinitivo, flexionado ou não flexionado» (idem, p. 621), como se pode observar nos exemplos: 

«É difícil recebermos a informação a tempo.»
«É possível apresentarmos o trabalho a tempo.»
 
1 Assinale-se que, na análise da sequência «o que é provável» + oração finita ou não-finita («o que é provável que eles pensem»/«o que é provável eles pensarem»), deve considerar-se que a completiva («que eles pensem»/«eles pensarem») está encaixada numa oração relativa livre («o que é provável»). Este tipo de oração levanta problemas complexos de análise, que já foram abordados nas respostas Relativas livres ou sem antecedente e As frases relativa...

Pergunta:

Deve dizer-se «ferida narcísica», ou «ferida narcisista»?

Muito obrigada.

Resposta:

Os dois adjectivos, narcísico(a) e narcisista, encontram-se registados no Vocabulário Ortográfico do Português, no Portal da Língua, da responsabilidade do ILTEC, o que atesta a legitimidade das duas palavras.

O termo mais comum é, sem sombra de dúvida, narcisista, usado para designar «aquele que tem o culto por si próprio, pela própria pessoa».

Por sua vez, narcísico é um termo do vocabulário específico do domínio da psicologia e da psicanálise. Tal como narcisista, a palavra narcísico(a) é um adjectivo correspondente a narcisismo, «amor pela própria imagem», usado na descrição e na teorização do desenvolvimento psicossocial (cf. J. Laplanche e J.-B. Pontalis, Vocabulário de Psicanálise, Lisboa, Moraes Editores, 5.ª edição).