Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber qual a função sintáctica desempenhada pela expressão «Muitos mortos» na frase «Muitos mortos houve, entre eles D. Sebastião, na batalha de Alcácer-Quibir». Será sujeito nulo expletivo? Será complemento directo?

Agradeço desde já a vossa atenção e disponibilidade.

Resposta:

«Muitos mortos» é o complemento directo da frase «Muitos mortos houve», e não sujeito, pois o verbo haver é impessoal (na acepção de «existir»). Segundo a gramática tradicional, os verbos impessoais, usados invariavelmente na 3.ª pessoa do singular, não têm sujeito (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 13.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 1997, p. 447).

Para além da especificidade deste tipo de verbo, é de referir que todo o verbo/predicado concorda com o sujeito da frase (quando o há) e, neste caso, não há dúvida de que não há qualquer legitimidade numa hipotética classificação de «muitos mortos» como sujeito de «houve».

Uma vez que a consulente faz referência ao sujeito nulo expletivo, importa lembrar a especificidade deste conceito, pois não pode ser confundido com a função de «muitos mortos». Segundo o Dicionário Terminológico, sujeito nulo é aquele que «não tem realização gramatical», e nos casos em que o «sujeito nulo pode não ter qualquer interpretação, como em (iii), [é] designado de expletivo:

(iii) [-] Choveu muito. [-] Há neve naquela montanha.»

No âmbito da investigação linguística actual, surge a noção de sujeito expletivo (também denominado gramatical, aparente ou vazio) para os casos em «que, noutras línguas, têm realização gramatical, marcando posição em construções com verbos impessoais (compare-se Chove torrencialmente com It rains cats and dogs), com verbos de elevação (compare-se Parece que o João já chegou com It seems John has already arrived), com sujeitos frásicos extrapostos (compare-se Surpreende-me que o João tenha chegado atrasado com It surprises me that Jonh came late) e em construções existenciais (compare-se...

Pergunta:

Qual a etimologia e o significado do nome próprio Rogélia?

Resposta:

Segundo o Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa (vol. III, 3.ª ed., Lisboa, Livros Horizonte, 2003), de José Pedro Machado, o nome próprio Rogélia formou-se como «feminino de Rogélio», nome este que «é usual em pessoas oriundas da Galiza» e sobre o qual se pensa «tratar-se de divergente de Rogério».

Por sua vez, o nome Rogério, mais frequente, cuja forma mais antiga e «de carácter tradicional — Rugeiro (Os Lusíadas, I, II) — ainda é popular hoje em Évora (como Rogeiro), é de «origem germânica: Ruodiger, Rudger, à letra “lança de glória” (guerreiro glorioso), alemão moderno Rüdiger, que passou para o romanço» (J. Leite de Vasconcelos, Antroponímia Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional, 1928, p. 531). O feminino deste nome, «Rogéria, ocorre em Manchete de 7-II-1981 (p. 22), e, como sobrenome, no Diário de Notícias de 13-VII-1977 (p. 10)» (José Pedro Machado, op. cit.).

Pergunta:

Com os meus cumprimentos pelo vosso regresso.

Gostaria de saber a origem e o significado da expressão: «Não há figos pra ninguém.»

Resposta:

Na pesquisa que realizámos em bibliografia1 específica sobre ditados, expressões correntes e frases feitas, não encontrámos dicionarizada nem registada a expressão «Não há figos para ninguém».

No entanto, se fizermos uma breve análise dessa expressão — e tendo em conta o valor do figo como um fruto desejado, agradável —, poder-se-á inferir que está associada a algo como «já não há aqui nada de que possas usufruir», «já se acabou o que tu pretendias», sobressaindo uma ideia de negação, de perda de algo agradável que era objecto de desejo da pessoa a quem o sujeito de enunciação se dirige.

Se remetermos para a simbologia do figo — que, por ter «inúmeras sementes, está associado à  fertilidade» (Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dicionário de Símbolos, Lisboa, Teorema, 1994, p. 323) — e da figueira — que, tal como a oliveira e a videira, «simboliza a abundância» —, apercebemo-nos de que esse fruto está, desde as suas origens, ligado ao campo semântico da riqueza e do prazer. Esse conceito está bem explícito no provérbio «Uns comem figos, a outros rebenta-lhes a boca» (Grabiela Funk e Mattias Funk, Dicionário Prático dos Ditados Portugueses, Lisboa, Cosmos, 2008, p. 519), em que se evidencia o contraste entre a sorte de uns, representada pelos figos, e o azar de outros, que só conhecem o mal e o sofrimento.

1  Deolinda Milhano, Dicionário de Ditados (Provérbios) e Frases Feitas, Lisboa, Colibri, 2008; Grabiela Funk e Mattias Funk, Dicionário Prático dos Ditados Portugueses, Lisboa, Cosmos, 2008; R. Magalhães Júnior, Dicionário de Provérbios e Curiosidades, São Paulo, Cultrix, 1959; Orlando Neves, Dicionário das Origens das Frases Feitas, Porto, ...

Pergunta:

Existiria a palavra "apóstola" como feminino de apóstolo?

Caso a resposta seja positiva, deve ser, suponho, uma palavra com o sentido de mulher cristã que evangeliza ou de mulher que propaga alguma ideia ou doutrina não necessariamente religiosa ou cristã.

Muito obrigado.

Resposta:

Não se encontra registado em nenhum dos recentes vocabulários ortográficos (AO 90) — Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (2009), da Academia Brasileira das Letras, Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (2009), da Porto Editora, e Vocabulário Ortográfico Português (2010), da responsabilidade do Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC) — qualquer termo como feminino de apóstolo, surgindo, neste último, a indicação para «apóstola»: «não registada; palavra não encontrada», o que nos leva a depreender que não está atestada.

Na mesma linha, os gramáticos Cunha e Cintra, em Nova Gramática do Português Contemporâneo (13.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 1997, p. 196), assim como Silveira Bueno, na sua Gramática Normativa da Língua Portuguesa (São Paulo, Ed. Saraiva, 1968, p. 164), colocam apóstolo — a par de algoz, cônjuge, indivíduo, criança, pessoa, testemunha, vítima — na lista dos substantivos sobrecomuns, «os que «têm um só género gramatical para designar os sexos».

Por sua vez, Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa (Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 2009), sem mencionar o caso de apóstolo, faz referência à «presença, cada vez mais acentuada, da mulher nas atividades profissionais que até bem pouco eram exclusivas ou quase exclusivas do homem, [o que] tem exigido que as l...

Pergunta:

Gostaria de saber do posiciona[mento] de vocês no que concerne a esta frase:

«Essa é uma questão de somenos.» Está a frase errada? «De somenos» tem de se referir obrigatoriamente a um substantivo (como nestoutra frase: «questões de somenos importância»), ou o seu sentido por si só encerra significado de «algo de menor valor»?

Resposta:

Segundo os dicionários consultados, o adjectivo somenos designa o «que tem pouco ou nenhum valor», e, por sua vez, a locução «de somenos» significa «de pouca importância ou valor; que é medíocre, rasca, ordinário, reles».

Por isso, a expressão «de somenos importância», que é bastante comum, é uma redundância, pois «importância» repete uma ideia contida em «somenos». Disso mesmo nos dá conta o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa (2001), ao explicitar o valor «de somenos importância» como «o mesmo que somenos».

Assim, apesar de ter-se vindo a ignorar o verdadeiro sentido de «de somenos» —  pois o uso tem optado por «de somenos importância», como se pode verificar pelo exemplo retirado do dicionário citado: «Naquela altura, considerou que era uma questão de somenos interesse» —, isso não significa que se continue a incorrer no mesmo erro.

Portanto, tal como a consulente sugere, basta dizer «Essa é uma questão de somenos».