Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Está errado dizer «A gente fomos ao cinema» porque ocorre silepse? A silepse é um erro?

Resposta:

O tema das concordâncias, devido ao uso dos falantes, não é linear e tem-se revelado como uma das áreas críticas da nossa língua devido à complexidade das diferentes situações que têm surgido. Aliás, não é, decerto, por acaso que «uma parte importante das regras sintácticas da maioria das línguas consiste naquilo que podemos considerar por regras de concordância, [o que se deve ao facto de que] se diz que existe concordância entre duas expressões linguísticas quando elas possuem determinadas propriedades em comum e essa coincidência de propriedades é uma condição necessária para gramaticalidade do discurso» (João Peres e Telmo Móia, Áreas Críticas da Língua Portuguesa, 2.ª ed., Lisboa, Caminho, 2003, p. 449).

É de referir que os linguistas Peres e Móia, que dedicaram um capítulo (VII) às concordâncias na obra citada, não colocaram o caso de construções com o sujeito «a gente» como objecto de análise, do que se infere que não seja considerado como crítico/polémico. Através de três exemplos em que o sujeito «a gente» ocorre (para apresentar casos de «concordância de predicadores com complementos directos»), verificamos que o predicado se encontra sempre no singular, o que não deixa margem para dúvidas de que essa é a forma correcta e de que qualquer outra hipótese de concordância do predicado (no plural) com tal sujeito seria considerada como incorrecta ou agramatical (idem, pág. 448; o símbolo * indica frase agramatical):

«Toda a gente acha este rapaz simpático.»

«Toda a gente acha estes rapazes simpáticos.»

*«Toda a gente acha estes rapazes simpático.»

Repare-se que a agramaticalidade do último exemplo se deve apenas à falta de concordância do predicador («simpático») com o complemento directo («estes rapazes»).

Pergunta:

Não é correcto dizer «Todos tínhamos os papéis em ordem»?

Resposta:

É correcto dizer-se tanto «Todos tínhamos os papéis em ordem» (em que está implícita a ideia e a presença subentendida do pronome nós como parte do sujeito — «Todos nós») — o que pressupõe que tal enunciado seja dito por alguém que pertença ao grupo representado por «Todos» — como a frase com o predicado na 3.ª pessoa do plural «Todos tinham os papéis em ordem», em que é feita a concordância com «todos», referindo-se a «todos eles».

É de referir que um dos comportamentos de todos, enquanto quantificador universal (tal como ambos), se distingue pelo facto de poder «ser seguido de pronomes pessoais» (Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, 5.ª ed., Lisboa, Caminho, 2003, p. 359) — assim como por poder ser «seguido de artigo definido ou de demonstrativo» (idem, p. 358) —, o que determina a concordância do predicado com o respectivo sujeito.

Assim, podem ocorrer frases como:

«Todas as maças estão verdes.»
«Todas essas maçãs estão verdes.»
«Todas elas estão verdes.»
«Todos os rapazes ficaram no cinema.»
«Todos eles ficaram no cinema.»/«Todos ficaram no cinema.»
«Todos nós ficámos no cinema.»/«Todos ficámos no cinema.»
«Todos nós fizemos parte dessa equipa.»/«Todos fizemos parte dessa equipa.»
«Todos vós sentistes o mesmo receio que nós.»
«Todos sentistes o mesmo receio que nós.»

 

Portanto, a pessoa da forma verbal do predicado corresponde ao pronome pessoal (explícito ou implícito/subentendido) que especifica o sujeito «todos».

Pergunta:

Frequento o ensino universitário e tenho um trabalho para fazer em relação a erros de estrutura frásica. Recolhi alguns em jornais diários e revistas cor-de-rosa, contudo não sei como justificar as que enviarei a seguir. Se me pudesse ajudar, agradecia.

As frases são:

«E justifica, salientando que quando "a ofendida levantou-se e tentou dirigir-se..."»;

«À hora de fecho desta edição, a câmara municipal ainda não tinha se pronunciado sobre o novo documento...»

Resposta:

As duas frases apresentadas são exemplos de casos de colocação incorrecta do pronome reflexivo se, que deveria estar colocado antes do predicado (verbo), observando-se a violação de duas das regras gerais da colocação dos pronomes átonos.

Assim, a forma correcta da primeira frase deveria ser «E justifica, salientando que quando "a ofendida se levantou e se tentou dirigir..."»; porque o pronome se encontra numa «oração subordinada», um dos casos previstos pelas regras gerais. Segundo a norma, «é preferida a próclise (colocação anterior ao predicado) do pronome […] nas orações subordinadas desenvolvidas, ainda quando a conjunção esteja oculta» (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 17.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 2002, pp. 311-312), como se pode verificar nos exemplos seguintes:

«Quando me deitei, à meia-noite, os preços estavam à altura do pescoço» (Carlos Drummond de Andrade, A Bolsa & a Vida, p. 2)

«Prefiro que me desdenhem, me torturem, a que me deixem só» (Urbano Tavares Rodrigues, A Noite Roxa, p. 174)

Relativamente à segunda frase, a forma correcta seria «À hora de fecho desta edição, a câmara municipal ainda não se tinha pronunciado sobre o novo documento...», porque, «nas orações que contêm uma palavra negativa (não, nunca, jamais, ninguém, nada, etc.)», a próclise do pronome é aconselhada, o que se observa nas seguintes frases:

«Não lhes dizia eu?» (Mário de Sá-Carneiro, Céu em Fogo, p. 348)

«Nunca o vi tão sereno e obstinado» (Ciro dos Anjos, Montanha, p. 316)

Pergunta:

Na oração «Durante a tempestade, muitos carros foram arrastados»:

1. Qual o agente da passiva?

2. Podemos passar a oração para a voz ativa?

Resposta:

O «agente da passiva é o complemento que, na voz passiva com auxiliar, designa o ser que pratica a acção sofrida ou recebida pelo sujeito» (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 148).

Analisando a frase que nos apresentou, verificamos que não há agente da passiva (explícito). Esta situação deve-se ao facto de aí se ter como referência uma situação de tempestade, o que torna desnecessária a verbalização dos agentes que provocaram a acção sobre os carros. Tratando-se de uma notícia, torna-se redundante enunciar ou enumerar os elementos/fenómenos naturais causadores do arrastamento dos carros, porque estes são do conhecimento do público. Ora, não havendo agente da passiva (mesmo que este esteja implícito), torna-se inviável passar essa frase para a voz activa, embora não haja dúvida de que se trata de uma frase passiva. Como poderíamos construir uma frase activa, a partir desta, se não "temos" sujeito para ela?

No entanto, a frase «Durante a tempestade, muitos carros foram arrastados» está correcta e completa, não se sentindo necessidade da especificação do agente da passiva (se há tempestade, quem arrastou os carros foram os elementos da natureza que provocaram a tempestade — chuvas torrenciais, ventos fortes, caudal dos rios…). Decerto que ficaria muito estranha uma notícia como «Durante a tempestade, muitos carros foram arrastados pelas águas das chuvas/pela chuvas torrenciais, pelo caudal das águas». Mas, formulada desta forma, poderia passar-se a frase para a activa: «As águas das chuvas/as chuvas torrenciais/o caudal das águas arrastaram/arrastou muitos carros, durante a tempestade.» 

De qualquer modo, apercebemo-nos de que o objectivo do enunciado que nos apresentou é o de fazer sobressair a acção sofrida pelo sujeito, e não quem a p...

Pergunta:

Uma pergunta (colocada por um aluno do 5.º ano):

Já que a personificação corresponde, grosso modo, à atribuição de qualidades humanas (de persona) a seres não humanos, como se designa o processo inverso, quando eu dou qualidades dos animais às personagens (como, no exemplo: «O Luís voava sobre a cidade...»)?

Grato.

Resposta:

De facto, sempre que nos confrontamos com enunciados como, por exemplo, «A água não pára de chorar» (“Dentro da Noite” in Manuel Bandeira, Obras Poéticas, Livraria Bertrand, Lisboa, 1956, p. 64) —, não temos dúvidas de que nos encontramos perante um caso óbvio de personificação, «a figura de retórica que consiste em atribuir qualidades, comportamentos, atitudes e impulsos humanos a coisas ou seres inanimados e a animais irracionais» (E-Dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia (org.).

Mas em todas as outras situações discursivas em que se verifique a fusão de duas realidades, estando implícita uma associação entre elas (sem a presença do termo explícito de comparação), é a metáfora que está presente. No exemplo apresentado pelo consulente — «O Luís voava sobre a cidade» —, coloca-se o «Luís», como sujeito, a «voar», assemelhando-o aos pássaros e aos aviões (decerto porque se encontra no ar — num avião, num pára-quedas…), atribuindo-lhe uma propriedade que é própria das aves e da aeronáutica.